Mesmo com as represas secando, governador espera a água bater na cintura para agir
por Cida de Oliveira
publicado
02/02/2015 09:11,
última modificação
04/02/2015 23:25
EDSON LOPES JR/A2 FOTOGRAFIA
A
iminente tragédia ambiental, com consequências sociais e econômicas,
não era segredo.
Em vez de assumir e enfrentar o problema, Alckmin
voltou ao tempo em que o câncer era chamado de “aquela doença” – não se
tocava no assunto, e o doente ia piorando até não ter chances.
“Estamos passando por uma estiagem histórica.
A falta d’água está presente em todo o Sudeste.
Apesar da grave situação, estamos trabalhando para melhor servir.
Use a água com muita consciência.”
A mensagem está no site da Marina Estância Confiança, de Bragança Paulista, 90 quilômetros da capital paulista.
O centro de lazer combina hotelaria e atividades náuticas às margens da represa Jaguari-Jacareí, que com outras cinco compõem o sistema Cantareira.
De acordo com o atendente do setor de reservas, a paisagem está bonita, mas quem conhece a represa de outros carnavais logo percebe seu nível mais baixo.
Mesmo assim, nenhuma das atividades aquáticas deverá ser suspensa neste verão.
A falta d’água está presente em todo o Sudeste.
Apesar da grave situação, estamos trabalhando para melhor servir.
Use a água com muita consciência.”
A mensagem está no site da Marina Estância Confiança, de Bragança Paulista, 90 quilômetros da capital paulista.
O centro de lazer combina hotelaria e atividades náuticas às margens da represa Jaguari-Jacareí, que com outras cinco compõem o sistema Cantareira.
De acordo com o atendente do setor de reservas, a paisagem está bonita, mas quem conhece a represa de outros carnavais logo percebe seu nível mais baixo.
Mesmo assim, nenhuma das atividades aquáticas deverá ser suspensa neste verão.
Há em Bragança várias marinas, que criam empregos e
receita para o município.
De três anos para cá, o movimento vem caindo
conforme o nível da água. “Pelo menos 300 trabalhadores desse setor
foram demitidos.
O ramo hoteleiro, de alimentação, o comércio em geral
também são afetados.
A indústria começa a sofrer”, diz Lamartine Oscar
Veiga, assessor de comunicação do Sindicato dos Trabalhadores em Hotéis,
Bares e Restaurantes de Águas de Lindoia e Região.
Morador antigo de Bragança, ele acompanha o
esvaziamento da represa nos últimos anos e foi um dos primeiros a levar o
tema para o debate ambientalista.
“O aumento da população, o boom
imobiliário e a ganância comercial aumentaram a demanda por água.
Faltaram planejamento e investimentos da Sabesp para a reposição do
crescente volume retirado do sistema.
Como ninguém percebia o que estava
acontecendo?”, questiona, chamando a atenção para a ameaça aos
municípios do Circuito das Águas de São Paulo.
“Se nada for feito,
cidades como Lindoia, Águas de Lindoia, Serra Negra, Amparo e Socorro,
entre outras, passarão a compor o circuito da seca.
Não terão como
sobreviver.”
Com a conivência da imprensa comercial, Geraldo
Alckmin abafou a crise e dela conseguiu se desvencilhar por um bom
tempo.
Pouca gente soube, por exemplo, dos protestos em Itu contra as
torneiras secas, que terminou com ônibus incendiado.
E muito menos que
os reservatórios estão secando pela inoperância do governo estadual
paulista – que transfere a culpa para São Pedro, que teria resolvido
esticar férias.
A população praticamente não sabe que o governo paulista
tem pouco mais da metade das ações da Companhia de Saneamento Básico do
Estado de São Paulo (Sabesp) e que é o governador quem escolhe quem vai
presidi-la – como acontece com a Petrobras, cuja crise a mídia não faz
cerimônia em vincular ao governo federal.
-
ADRIANO ROSA/AGÊNCIA SOCIAL DE NOTÍCIAS
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- Zuffo: do final dos anos 1960 ao início dos 1970, SP tinha falta d’água e o racionamento era constante
Omissão determinada
Embora a Sabesp insistisse em negar, em outubro
passado já havia racionamento em 35 municípios, prejudicando 5 milhões
de pessoas e inflacionando o preço da água engarrafada, que mesmo assim
começou a sumir das prateleiras.
Se fosse pouco, famílias inteiras
tiveram de recorrer a poços desativados e contaminados, começaram a
estocar em recipientes improvisados, a comprar galões de água de origem
duvidosa, vendidas até em pet shop. Sem que se toque no assunto – a
Secretaria Estadual da Saúde nem sequer emitiu um boletim esclarecendo a
população – a saúde está em risco também porque não é fácil tratar
adequadamente o chamado volume morto, cuja qualidade a Sabesp jurava
controlar em seus próprios laboratórios.
“A água dali é mais turva, mais contaminada, e o
excesso de cloro também faz mal à saúde”, diz o coordenador do
Observatório de Clima e Saúde da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), o
sanitarista Christovam Barcellos.
De acordo com ele, toda a água
consumida neste momento tem de ser monitorada. “Também é necessário
reforçar o sistema de vigilância para detectar surtos de doenças como a
hepatite A, diarreia e dengue.
Além de economizar água, a população deve
relatar problemas de abastecimento, garrafões suspeitos, água turva e
com mau cheiro, surtos de doenças na vizinhança.”
Confirmada a reeleição para um terceiro mandato, o
pacto de silêncio começou a fazer água.
A escassez e seus efeitos foram
deixando de ser tabu nos jornais e na TV, a ponto de já noticiarem o
final dos tempos do sistema.
Ou seja, a confirmação do que os técnicos
diziam e que Alckmin negava sem corar a face.
No último dia 14, o novo
presidente da Sabesp, Jerson Kelman, admitiu à Rede Globo que é possível
que o Sistema Cantareira seque em março.
A iminente tragédia ambiental, com consequências
sociais e econômicas, não era segredo. Doutor em Engenharia Hidráulica e
Saneamento, o professor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp)
Antonio Carlos Zuffo explica que não é de hoje que se sabe que a
natureza alterna períodos de pouca chuva com outros de chuvas mais
abundantes.
“Até final da década de 60, começo da de 70, a gente tinha
problema de falta de água, com racionamento constante.
A partir da
década de 70 começou a chover mais e as enchentes estampavam os jornais.
Agora devemos voltar aos tempos mais secos.”
Mais: em 2000, um estudo da Organização das Nações
Unidas já previa que quase metade da população mundial vai ficar sem
água no ano 2025.
E institutos de hidrologia de várias partes do mundo
já advertiam que as reservas poderiam se esgotar completamente, em um
mapa que incluía São Paulo.
Naquele mesmo ano, quando o também tucano
Mário Covas governava São Paulo, paulistanos abastecidos pelo sistema
Guarapiranga, o segundo mais importante da região metropolitana, tiveram
a água racionada por três meses.
Cinco anos antes, durante o governo do
outro tucano Franco Montoro (então no PMDB – o PSDB ainda não havia
sido criado), um racionamento com o pretexto de baixar o consumo da
mesma Guarapiranga, previsto para durar uma semana, se arrastou por dois
longos meses.
“Não é segredo que vêm por aí eventos climáticos cada
vez mais extremos.
E a capacidade dos sistemas produtores de água é
insuficiente para atender a demanda crescente, ainda mais com clima
desfavorável assim”, ressalta o especialista em gerenciamento de
recursos hídricos e recuperação de reservatórios José Galizia Tundisi,
do Instituto Internacional de Ecologia, de São Carlos (SP).
Com base na
análise de séries históricas de dados climáticos e hidrológicos, ele diz
que uma mudança climática está em curso, que ameaça a segurança hídrica
no Sudeste, especialmente na região metropolitana de São Paulo – o que
sempre chegou ao conhecimento do governo.
-
FOTOS ALEX RIBEIRO/VISOR MAGICO
- O novo presidente da Sabesp, Jerson Kelman, admitiu que é possível
- que o Sistema Cantareira seque
- em março
'Aquela doença'
Em vez de assumir e enfrentar o problema, Alckmin
voltou ao tempo em que o câncer era chamado de “aquela doença”.
Como não
se tocava no assunto, havia pouca pesquisa e opções de tratamento, e o
doente ia piorando até não ter mais chances.
Enquanto tinha o tempo a
seu favor, ele não fez a manutenção dos sistemas e nem investiu para
ampliá-lo de maneira sustentável, conforme o aumento da demanda.
Muito
menos buscou alternativas, como a transposição de águas subterrâneas,
conforme defende o geólogo Carlos Eduardo Guaglia Giampiá, integrante do
Conselho Estadual de Recursos Hídricos e da diretoria da Associação
Brasileira de Água Subterrâneas (Abas).
“O estado sempre ignorou as águas subterrâneas, que
respondem por 87% dos estoques de água doce do planeta.
Além de não
investir nessa nova tecnologia, a Sabesp ainda abandonou poços
artesianos produtivos em todo o estado”, diz.
De acordo com ele, dois
estão no distrito do Anhanguera, na região noroeste da capital, que está
na lista dos que mais vão sofrer com a escassez conforme a própria
companhia.
O descaso inclui a poluição de partes do aquífero
Guarani, um dos maiores do mundo, sobre o qual está boa parte do
território paulista, e também a inoperância do Conselho Estadual de
Recursos Hídricos, que tem um terço dos integrantes ligados ao governo
estadual.
“Há cinco anos estou no Conselho, que mal se reúne mesmo
diante da crise.
Passamos a tomar decisões em bloco antes das reuniões
para ver se conseguimos fazer algo, já que as decisões são empurradas
com a barriga”, diz Giampiá.
Segundo ele, antes da crise a Sabesp produzia 60
metros cúbicos de água por segundo, mas perdia 25% em razão de
vazamentos.
Até pouco tempo, o Cantareira era um dos maiores produtores
de água do mundo.
Formado por seis represas, que utilizam as águas dos
rios Atibainha, Cachoeira, Jaguari, Jacareí e Juqueri, interligadas por
canais e túneis que somam 48 quilômetros, depois de vencer desníveis.
Produzia 30 metros cúbicos por segundo, mas sua vazão caiu pela metade.
Sem conseguir esconder uma crise sem precedentes,
Alckmin quis multar a população por aumento no consumo, trocar a gestão
da Sabesp e considerar soluções que, infelizmente, não são para amanhã.
Furar poço é possível, mas é literalmente tirar água de pedra devido às
características do solo paulista.
Se a perfuração pegar fraturas nas
rochas, encontra água, mas seriam necessários muitos poços.
E
perfurá-los depende de tempo para os estudos, as licenças e a
perfuração.
A transposição das águas do rio Paraíba do Sul para o
Cantareira, via rios Jaguari com Atibainha, exigem a construção de 25
quilômetros de adutoras e bombeamentos, o que não deve ficar pronto
antes do segundo semestre de 2016. “Mas os reservatórios estão vazios.
Estaríamos ligando o vazio com o esvaziado.
Mesmo que se construa ainda
para este ano, se não vierem chuvas em quantidade não vai ter água de um
lado para transportar para o outro”, diz Zuffo, da Unicamp.
No final do ano passado, a Academia Brasileira de
Ciências (ABC) realizou um seminário para discutir saídas para a crise.
Do encontro saiu um conjunto de recomendações, a Carta de São Paulo.
A preocupação é com as consequências que vão além dos atuais prejuízos
às economias locais e regionais, à produção de energia e de alimentos
que logo deverão ser colocados na ponta do lápis por pesquisadores como
Tundisi, com financiamento de bancos e outras empresas.
Sem alarmismo, eles consideram o aumento da
vulnerabilidade da população, conflitos pelo uso da água e, portanto, o
risco socioeconômico.
Por isso, recomendam modificações imediatas no
sistema de governança de recursos hídricos, com a participação do
público num modelo transparente, em que a sociedade possa discutir
soluções e não apenas pagar multas.
Afinal, trata-se de um problema de
todos.
Além disso, defendem investimento imediato em medidas
de longo prazo, projetos de saneamento básico e tratamento de esgotos
em nível nacional, estadual e municipal, monitoramento de quantidade e
qualidade da água, proteção, conservação e recuperação da
biodiversidade, reconhecimento e conscientização social da amplitude da
crise e capacitação de gestores com visão sistêmica e interdisciplinar.
Por enquanto, para evitar o pior que está por vir, só mesmo rezando para
que os céus despejem as chuvas que não estão previstas nos relatórios
científicos.
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