Psicanálise Kleiniana
Klein, Melanie, née Reizes (Viena,1882-Londres,1960), psicanalista inglesa. No plano político, o kleinismo é um dos grandes componentes do moderno legitimismo freudiano, uma vez que se desenvolveu como escola no interior da International Psychoanalytical Association (IPA), sem contestar a idéia, própria do freudismo e da psicanálise, da necessidade de uma organização universalista (e não comunitarista) do movimento psicanalítico. Melanie Klein foi o principal expoente do pensamento da segunda geração psicanalítica mundial. Deu origem a uma das grandes correntes do freudismo, o kleinismo, e graças a Ernest Jones, que a chamou par a Grã-Bretanha, contribuiu para o desenvolvimento considerável da escola inglesa de psicanálise. Transformou totalmente a doutrina freudiana clássica e criou não só a psicanálise de crianças, mas também uma nova técnica de tratamento e de análise didática, o que fizera dela um chefe de escola.
Sua obra, composta essencialmente de cerca de cinqüenta artigos e de um livro, “A psicanálise de crianças”, foi traduzida em quinze línguas e reunida em quatro volumes. Acrescenta-se uma “Autobiografia” inédita e uma importante correspondência. A tradução francesa, realizada em parte por Marguerite Derrida, é de excepcional qualidade. Muitas obras foram dedicadas a Melaine Klein, entre as quais as de Hannah Segal, sua principal comentadora, e a de Phyllis Grosskurth, sua biógrafa. Um dicionário dos conceitos kleinianos foi realizado por R.D. Hinshelwood em 1991.
Na história do movimento psicanalítico, deu-se o nome de kleinismo, em oposição ao annafreudismo, a uma corrente representada pelos diversos partidários de Melanie Klein, dentre os quais se incluem os pós-kleinianos que se pautam em Wilfred Ruprecht Bion. Foi depois do período das Grandes Controvérsias, que desembocara, em 1954, numa clivagem da British Psychoanalytical Society (BPS) em três tendências, que o termo se impôs.
Diversamente do annafreudismo, o kleinismo não é uma simples corrente, mas uma escola comparável ao lacanismo. Com efeito, constitui-se como um sistema de pensamento a partir de um mestre (no caso, uma mulher) que modificou inteiramente a doutrina e a clínica freudianas, cunhando novos conceitos e instaurando uma prática original da análise, da qual decorreu um tipo de formação didática diferente da do freudismo clássico.
A partir do ensino de Karl Abraham, Melanie Klein e seus sucessores fizeram escola, integrando na psicanálise o tratamento das psicoses (esquizofrenia, “borderlines”, distúrbios da personalidade ou do “self”), inventando o próprio princípio da psicanálise de crianças (por uma rejeição radical de qualquer pedagogia parental) e, por fim, transformando a interrogação freudiana sobre o lugar do pai, sobre o complexo de Édipo e sobre a gênese da neurose e da sexualidade numa elucidação da relação arcaica com a mãe, numa evidenciação de ódio primitivo (inveja) próprio da relação de objeto e, por último, numa busca da estrutura psicótica (posição depressiva/posição esquizo-paranóide) que é característica de todo sujeito. Assim, os kleinianos, tal como os lacanianos, inscreveram a loucura bem no âmago da subjetividade humana.
Por outro lado, definiram um novo âmbito para a análise, muito diferente do dos freudianos, baseado em regras precisas e, em especial, num manejo da transferência que tende a excluir da situação analítica qualquer forma de realidade material em prol de uma realidade psíquica pura, conforme à imagem que o psicótico tem do mundo e de si mesmo. Daí a criação do termo “acting in”, decorrente de “acting out”.
O kleinismo, define-se, portanto, ao lado do lacanismo e diversamente do annafreudismo, como uma verdadeira doutrina, que tem sua coerência própria, um corpo conceitual específico, um saber clínico autônomo e um modo de formação didática particular. Como reformulação da doutrina freudiana original, ele faz parte do freudismo, do qual reconhece os fundamentos teóricos, os conceitos e a anterioridade histórica. É uma das modalidades interpretativas do freudismo, articulada com o antigo suporte biológico e darwinista deste último. Nessas condições, não revisou os fundamentos epistemológicos dele nem propôs qualquer teoria do sujeito, como fez o lacanismo.
Enquanto o annafreudismo encarna, através da figura da filha do pai, o vínculo de identidade que interligou os membros da antiga diáspora vienense exilada nos Estados Unidos e na Grã-Bretanha, o kleinismo é uma doutrina em expansão, sobretudo nos países latino-americanos (Brasil e Argentina), onde ajuda a psicanálise a enfrentar as outras escolas de psicoterapia que começaram a ameaça-la, a partir da década de 1970, em virtude de sua falta de criatividade.
Por ser uma escola de pensamento que alia um saber clínico a uma teoria, o kleinismo erigiu-se sobre uma crítica da forma dogmática do freudismo, para em seguida produzir, no próprio interior do freudismo de que nasceu, uma nova idolatria do mestre fundador, uma historiografia de tipo hagiográfico e um novo dogmatismo. E ainda não suscitou, como o freudismo, as condições internas para uma crítica a esse dogmatismo.
Vejamos um pouco mais sobre a história do kleinismo. Em 1927, M.Klein instala-se em Londres, por instâncias de E.Jones, criador e organizador da Sociedade Britânica de Psicanálise. Ali ensina sua teoria e funda uma escola, o que lhe vale, a partir de 1938, conflitos muitos violentos com A.Freud. Teoricamente, esta lhe censura as concepções de objeto, supereu, Édipo e fantasmas originários; para ela, a inveja, a gratidão e as posições depressivas e esquizoparanóide não são psicanalíticas. Clinicamente, censura-a por afirmar que é possível uma transferência no tratamento da criança, tornando desnecessário todo o trabalho com os pais. M. Klein recusa tais críticas, acusando sua rival de não ser freudiana. Em 1946, são criados dois diferentes grupos de formação de psicanalistas e, em 1955, é fundado o Melanie Klein Trust.
Com notável aprofundamento da formação dos juízos de atribuição e de existência, dos quais S.Freud tinha formulado os princípios, em seu artigo “A Negativa” (Die Verneinung, 1925), a teoria kleiniana estrutura-se sobre dois conceitos: o da posição esquizoparanóide, que combate de forma ilusória, mas violenta, toda perda, e o da posição depressiva, na qual a perda é realmente comprovada. Essas duas posições referem-se à perda, ao trabalho de luto e à reparação, consecutivos, de dois objetos psíquicos parciais e primordiais, dos quais todos os demais nada mais são do que substitutos metonímicos: o seio e o pênis. Ambos os objetos parciais entram em jogo em uma cena imaginária inconsciente, chamada por M.Klein de “cena materna”.
Nesse teatro do “eu-nascente”, sobre essa outra cena onde são representadas sua existência e sua atribuição, tais objetos irão surgir ou voltar às coxias e a seu depósito de acessórios. Nele, suas representações psíquicas encontram os índices de realidade, os traços reais e as representações que servem para lhes dar uma identidade familiar e perceptível, pois correspondem a outros objetos reais, que são os sujeitos parentais. M.Klein fornece, desses travestimentos identificatórios, elaborados pela psique do “infans” –esse imaginário irá, de fato, conhecer sua quintessência entre os três e os dez meses- graças aos quais o “infans” irá se encontrar, no estranho dos outros, um belo exemplo literário, em uma obra de M.Ravel, a respeito de um texto de Colette (1925): “L’enfant et les sortilèges”. Assim, a realidade exterior não é, em sua teoria, nada mais do que uma “Weltanschauung” da própria realidade psíquica. Porém, ela permite que uma criança muito pequena se assegure uma certa identidade de percepção e de pensamento entre seus objetos imaginários e outros mais reais; a seguir, adquire, progressivamente, juízos de atribuição e de existência a seu respeito, a fim de constituir um domínio das angústias com as quais é confrontada pela pulsões de vida e de morte, pois essa pulsões exigem dela, para sua satisfação, objetos reais ou substitutos imaginários.
A esse respeito, a teoria kleiniana desenvolve uma elaboração interessante. Esses objetos, que são para a criança o seio e o pênis, bem como seus desdobramentos reais, parciais ou totais (pais, irmão, irmã, meia-irmã, etc.), poderia o “infans” entrega-los, sem discernimento, à exigência pulsional, mesmo que representem para ele uma fundamental aposta atributiva, existencial e identificatória, e mesmo que, pela identificação com eles, poderia ele próprio se entregar às pulsões? Não o poderá fazer sem discernimento, mas em que consiste esse discernimento? Adquire a consistência de “dois operadores defensivos”, aos quais sucede, quando operam, “uma série de processos de tipo sublimatório”. Os dois operadores são, um deles, de ordem quantitativa e, outro, de ordem qualitativa.
Quantitativamente, o objeto é fracionado, dividido, fragmentado e multiplicado, por uma espécie de clivagem (clivagem do objeto); qualitativamente, é uma espécie de mínimo divisor comum que divide tudo o que está clivado em duas únicas categorias: a do bom e a do mau. Esses dois operadores defensivos, que, portanto, são a multiplicação por clivagem e as divisões pela classificação, a seguir, dão acesso a processos de tipo sublimatório: a introjeção para si, a projeção para fora e a identificação com aquilo que é introjetado ou projetado, podendo esses processos se combinar, para produzir, particularmente, identificações projetivas e introjetivas. Esses processos são sublimatórios, pois mediatizam as relações do sujeito com a pulsão, cuja satisfação precisa operar desvios suspensivos, desvios esses justamente impostos por estes processos.
Portanto, quando são instalados esses circuitos pulsionais complexos, é que são produzidos as sublimações, objetos, pulsões, angústias e outros afetos, que podem ser conservados, rejeitados, retomados, destruídos, idealizados, reparados, em suma elaborados, assim mediatizados pela criança; o que lhe permite abrir-se para juízos de atribuição e de existência, bem como para possibilidades identificatórias, pelas quais, para ela, o objeto só adquire valor por sua perda real. Essa perda também é a que deixa definitivamente cair alguma coisa no inconsciente, o que exprime o conceito de recalcamento primário.
Sublimações, defesas, apostas atributivas, existenciais ou identificatórias, controle das pulsões e das angústias, recalcamento; são estas as funções tradicionalmente atribuídas, em psicanálise, ao eu. Pois a instância do eu, em ação imediatamente para essas funções vitais, é, na teoria kleiniana, de saída confrontada com um Édipo, que seus objetos imaginários, somados aos da realidade, para fundar sua identidade, colocam em cena precocemente. E, com ele, apresenta-se um supereu feroz e aterrador, que atormenta o sujeito, introduzindo nele seu sentimento inconsciente de culpa.
Todavia, embora M.Klein não teorize exatamente nesses termos, sua concepção de eu pressupõe um sujeito diferente dele, com o qual não pode se confundir. De fato, à medida que as relações objetais substituem por objetos imaginários da realidade exterior, o eu, que comanda as sublimações por ele produzidas, poderia ele se tornar uma coisa diferente desses objetos, como eles trabalhando por processos de tipo sublimatório, como eles dividido por idênticas clivagens, como eles reduzido às mesmas classificações e, finalmente, como eles levado à destinos similares, pela relação com o isso? A partir de suas elaborações sobre a identificação, M.Klein o trata como tal. Mas, desde logo, qual poderia ser a sublimação, senão a de se tornar um sujeito que lhe seja outro, que se divida, para melhor poder subverter e não ter de sustentar unicamente o desejo?
De que modo, na teoria kleiniana, o eu só adquire valor com sua perda real, com seu recalcamento radical, para que advenha o sujeito? Através do supereu.
Para M.Klein, esse conceito está longe de ser apenas a instâncias coercitiva e moral, incluída nas três instâncias criadas por Freud, em sua segunda tópica. Em 1941, para mostrar a Jones as malversações teóricas de A.Freud, ela lhe escreve que o supereu é “o ponto máximo” da teoria freudiana: “Em minha opinião, a psicanálise percorreu um caminho mais ou menos retilíneo, até essa descoberta decisiva, que nunca mais foi igualada”. Esse ponto máximo é, literalmente, o falo da teoria kleiniana. A partir de J.Lacan, o falo é o significante do desejo; toda teoria tem o seu, para adquirir consistência; na teoria freudiana, por exemplo, é a castração. Resgatá-lo permite saber, a partir do significante do desejo que ele conceptualiza, que lei simboliza sua lógica. Portanto, em M.Klein, a lógica do desejo e sua lei adquirem sentido no supereu.
A angústia primária não está relacionada com a castração, mas com um desejo de destruição primordial, que é o desejo de morte do outro real. Esse desejo põe em cena um fantasma, onde o sujeito destrói o corpo materno, para apropriar-se de seus órgãos e, em particular, do “pênis paterno”, “protótipo de todos os objetos” contidos nesse corpo. Não é, pois, apenas o órgão que a criança deseja introjetar em si, mas também um “objeto totêmico”, ou objeto ancestral e protetor; mas, como todo o totem, é proibido obter gozo dele ou daquilo que é ordenado por lei. Sua introjeção traz também consigo o mau: o interdito do incesto, a angústia correlativa, correspondente ao desejo de transgredi-lo, a culpa que o inscreve em uma dimensão moral (ou cultural) e a necessidade de punição, que irá constituir o processo reparador. Na teoria kleiniana, o totem de duas faces, o falo, tem um nome simbólico: o supereu, instância arcaica, no sentido etimológico daquilo que é originário e fundador, daquilo que comanda e dirige, conduz e sanciona, atribui e retoma: “Coisa que morde, que devora e que corta”.
Por isso, o Édipo é pré-genital; sua vivência traumática não pode ser simbolizada pelo “infans”, a não ser pelo discurso de um outro; o recalcamento é secundário a ela, só se sustentando pela parte persecutória do supereu; a relação do pequeno sujeito com essa instância pode prefigurar as futuras identificações com um agressor: portanto, é dela que irão depender os mecanismos identificatórios.
Par despojar a mãe do pênis paterno que ela detém em seu seio, a criança precisa atravessar a primeira fase de desenvolvimento, que é uma “fase de feminilidade”, de uma importância vital e pouco reconhecida até agora, pois, nela, a criança descobre o desejo de possuir um determinado órgão: o pênis do pai. Privar dele a mãe significa, para o sujeito muito pequeno, impedi-la de produzir seus dois principais equivalentes simbólicos: o filho e as fezes; equivalentes que são, em sua a origem, ao desejo de ter, a “inveja”, e ao desejo de perder, o “ódio”. Nesse período precoce do desenvolvimento, a mãe, que leva embora as fezes do filho, também é a mãe que o desmembra e o castra (...). Em termos de realidade psíquica, ela já é, também ela, o “castrador”.
“Também ela”: portanto, o supereu deve ser castrador, conforme as imagos materna e paterna. Para M.Klein, aliás, o filho unifica primeiramente seus dois genitores; só os dissocia para garantir suas alianças imaginárias, quando se envolve em conflitos com eles. Conflitos relacionados ao complexo edípico precoce. Só será possível uma saída pacífica pela identificação somente com o pai. “Por mais forte que seja a influência do aspecto materno na formação do supereu, é, entretanto, o superu paterno que, desde o começo, possui um poder decisório”. Esse retorno ao pai está situado no momento em que o “visível” entra em cena, quando o pênis real “torna-se objeto do olhar”. Essa fase mais narcisista é reparadora, pois nela o pênis passa do interior da cena materna para fora do corpo do outro. Assim, esse real estabelece limites ao imaginário. Que, com freqüência, a mãe seja a fornecedora, isso faz com que seu filho seja capaz de se encontrar; ele então percebe que só pode receber dela aquilo que lhe faz falta. A partir dessa falta, o supereu, aliviado de seu peso, readquire significância totêmica e volta a ser lei do desejo, em lugar de ser um identificante persecutório. Entre as principais obras de M.Klein estão : “A psicanálise de crianças” (1932), “Ensaio de psicanálise” (1947), “Desenvolvimento em psicanálise” (1952) e “Inveja e gratidão” (1957).
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Bibliografia:
ROUDINESCO, ELISABETH - Dicionário de Psicanálise, Jorge Zahar Editor, RJ-1997.
CHEMAMA, ROLAND - Dicionário de Psicanálise Larousse, Artes Médicas, RS-1995.
LAPLANCHE E PONTALIS – Vocabulário da Psicanálise, Martins Fontes, SP-2000.
KAUFMANN, PIERRE – Primeiro Grande Dicionário Lacaniano, Jorge Zahar Editor, RJ-1996.
NASIO, J-D - Introdução às Obras de Freud, Ferenczi, Groddeck, Klein, Winnicott, Dolto, Lacan, Jorge Zahar Editor, RJ-1995.
Klein, Melanie, née Reizes (Viena,1882-Londres,1960), psicanalista inglesa. No plano político, o kleinismo é um dos grandes componentes do moderno legitimismo freudiano, uma vez que se desenvolveu como escola no interior da International Psychoanalytical Association (IPA), sem contestar a idéia, própria do freudismo e da psicanálise, da necessidade de uma organização universalista (e não comunitarista) do movimento psicanalítico. Melanie Klein foi o principal expoente do pensamento da segunda geração psicanalítica mundial. Deu origem a uma das grandes correntes do freudismo, o kleinismo, e graças a Ernest Jones, que a chamou par a Grã-Bretanha, contribuiu para o desenvolvimento considerável da escola inglesa de psicanálise. Transformou totalmente a doutrina freudiana clássica e criou não só a psicanálise de crianças, mas também uma nova técnica de tratamento e de análise didática, o que fizera dela um chefe de escola.
Sua obra, composta essencialmente de cerca de cinqüenta artigos e de um livro, “A psicanálise de crianças”, foi traduzida em quinze línguas e reunida em quatro volumes. Acrescenta-se uma “Autobiografia” inédita e uma importante correspondência. A tradução francesa, realizada em parte por Marguerite Derrida, é de excepcional qualidade. Muitas obras foram dedicadas a Melaine Klein, entre as quais as de Hannah Segal, sua principal comentadora, e a de Phyllis Grosskurth, sua biógrafa. Um dicionário dos conceitos kleinianos foi realizado por R.D. Hinshelwood em 1991.
Na história do movimento psicanalítico, deu-se o nome de kleinismo, em oposição ao annafreudismo, a uma corrente representada pelos diversos partidários de Melanie Klein, dentre os quais se incluem os pós-kleinianos que se pautam em Wilfred Ruprecht Bion. Foi depois do período das Grandes Controvérsias, que desembocara, em 1954, numa clivagem da British Psychoanalytical Society (BPS) em três tendências, que o termo se impôs.
Diversamente do annafreudismo, o kleinismo não é uma simples corrente, mas uma escola comparável ao lacanismo. Com efeito, constitui-se como um sistema de pensamento a partir de um mestre (no caso, uma mulher) que modificou inteiramente a doutrina e a clínica freudianas, cunhando novos conceitos e instaurando uma prática original da análise, da qual decorreu um tipo de formação didática diferente da do freudismo clássico.
A partir do ensino de Karl Abraham, Melanie Klein e seus sucessores fizeram escola, integrando na psicanálise o tratamento das psicoses (esquizofrenia, “borderlines”, distúrbios da personalidade ou do “self”), inventando o próprio princípio da psicanálise de crianças (por uma rejeição radical de qualquer pedagogia parental) e, por fim, transformando a interrogação freudiana sobre o lugar do pai, sobre o complexo de Édipo e sobre a gênese da neurose e da sexualidade numa elucidação da relação arcaica com a mãe, numa evidenciação de ódio primitivo (inveja) próprio da relação de objeto e, por último, numa busca da estrutura psicótica (posição depressiva/posição esquizo-paranóide) que é característica de todo sujeito. Assim, os kleinianos, tal como os lacanianos, inscreveram a loucura bem no âmago da subjetividade humana.
Por outro lado, definiram um novo âmbito para a análise, muito diferente do dos freudianos, baseado em regras precisas e, em especial, num manejo da transferência que tende a excluir da situação analítica qualquer forma de realidade material em prol de uma realidade psíquica pura, conforme à imagem que o psicótico tem do mundo e de si mesmo. Daí a criação do termo “acting in”, decorrente de “acting out”.
O kleinismo, define-se, portanto, ao lado do lacanismo e diversamente do annafreudismo, como uma verdadeira doutrina, que tem sua coerência própria, um corpo conceitual específico, um saber clínico autônomo e um modo de formação didática particular. Como reformulação da doutrina freudiana original, ele faz parte do freudismo, do qual reconhece os fundamentos teóricos, os conceitos e a anterioridade histórica. É uma das modalidades interpretativas do freudismo, articulada com o antigo suporte biológico e darwinista deste último. Nessas condições, não revisou os fundamentos epistemológicos dele nem propôs qualquer teoria do sujeito, como fez o lacanismo.
Enquanto o annafreudismo encarna, através da figura da filha do pai, o vínculo de identidade que interligou os membros da antiga diáspora vienense exilada nos Estados Unidos e na Grã-Bretanha, o kleinismo é uma doutrina em expansão, sobretudo nos países latino-americanos (Brasil e Argentina), onde ajuda a psicanálise a enfrentar as outras escolas de psicoterapia que começaram a ameaça-la, a partir da década de 1970, em virtude de sua falta de criatividade.
Por ser uma escola de pensamento que alia um saber clínico a uma teoria, o kleinismo erigiu-se sobre uma crítica da forma dogmática do freudismo, para em seguida produzir, no próprio interior do freudismo de que nasceu, uma nova idolatria do mestre fundador, uma historiografia de tipo hagiográfico e um novo dogmatismo. E ainda não suscitou, como o freudismo, as condições internas para uma crítica a esse dogmatismo.
Vejamos um pouco mais sobre a história do kleinismo. Em 1927, M.Klein instala-se em Londres, por instâncias de E.Jones, criador e organizador da Sociedade Britânica de Psicanálise. Ali ensina sua teoria e funda uma escola, o que lhe vale, a partir de 1938, conflitos muitos violentos com A.Freud. Teoricamente, esta lhe censura as concepções de objeto, supereu, Édipo e fantasmas originários; para ela, a inveja, a gratidão e as posições depressivas e esquizoparanóide não são psicanalíticas. Clinicamente, censura-a por afirmar que é possível uma transferência no tratamento da criança, tornando desnecessário todo o trabalho com os pais. M. Klein recusa tais críticas, acusando sua rival de não ser freudiana. Em 1946, são criados dois diferentes grupos de formação de psicanalistas e, em 1955, é fundado o Melanie Klein Trust.
Com notável aprofundamento da formação dos juízos de atribuição e de existência, dos quais S.Freud tinha formulado os princípios, em seu artigo “A Negativa” (Die Verneinung, 1925), a teoria kleiniana estrutura-se sobre dois conceitos: o da posição esquizoparanóide, que combate de forma ilusória, mas violenta, toda perda, e o da posição depressiva, na qual a perda é realmente comprovada. Essas duas posições referem-se à perda, ao trabalho de luto e à reparação, consecutivos, de dois objetos psíquicos parciais e primordiais, dos quais todos os demais nada mais são do que substitutos metonímicos: o seio e o pênis. Ambos os objetos parciais entram em jogo em uma cena imaginária inconsciente, chamada por M.Klein de “cena materna”.
Nesse teatro do “eu-nascente”, sobre essa outra cena onde são representadas sua existência e sua atribuição, tais objetos irão surgir ou voltar às coxias e a seu depósito de acessórios. Nele, suas representações psíquicas encontram os índices de realidade, os traços reais e as representações que servem para lhes dar uma identidade familiar e perceptível, pois correspondem a outros objetos reais, que são os sujeitos parentais. M.Klein fornece, desses travestimentos identificatórios, elaborados pela psique do “infans” –esse imaginário irá, de fato, conhecer sua quintessência entre os três e os dez meses- graças aos quais o “infans” irá se encontrar, no estranho dos outros, um belo exemplo literário, em uma obra de M.Ravel, a respeito de um texto de Colette (1925): “L’enfant et les sortilèges”. Assim, a realidade exterior não é, em sua teoria, nada mais do que uma “Weltanschauung” da própria realidade psíquica. Porém, ela permite que uma criança muito pequena se assegure uma certa identidade de percepção e de pensamento entre seus objetos imaginários e outros mais reais; a seguir, adquire, progressivamente, juízos de atribuição e de existência a seu respeito, a fim de constituir um domínio das angústias com as quais é confrontada pela pulsões de vida e de morte, pois essa pulsões exigem dela, para sua satisfação, objetos reais ou substitutos imaginários.
A esse respeito, a teoria kleiniana desenvolve uma elaboração interessante. Esses objetos, que são para a criança o seio e o pênis, bem como seus desdobramentos reais, parciais ou totais (pais, irmão, irmã, meia-irmã, etc.), poderia o “infans” entrega-los, sem discernimento, à exigência pulsional, mesmo que representem para ele uma fundamental aposta atributiva, existencial e identificatória, e mesmo que, pela identificação com eles, poderia ele próprio se entregar às pulsões? Não o poderá fazer sem discernimento, mas em que consiste esse discernimento? Adquire a consistência de “dois operadores defensivos”, aos quais sucede, quando operam, “uma série de processos de tipo sublimatório”. Os dois operadores são, um deles, de ordem quantitativa e, outro, de ordem qualitativa.
Quantitativamente, o objeto é fracionado, dividido, fragmentado e multiplicado, por uma espécie de clivagem (clivagem do objeto); qualitativamente, é uma espécie de mínimo divisor comum que divide tudo o que está clivado em duas únicas categorias: a do bom e a do mau. Esses dois operadores defensivos, que, portanto, são a multiplicação por clivagem e as divisões pela classificação, a seguir, dão acesso a processos de tipo sublimatório: a introjeção para si, a projeção para fora e a identificação com aquilo que é introjetado ou projetado, podendo esses processos se combinar, para produzir, particularmente, identificações projetivas e introjetivas. Esses processos são sublimatórios, pois mediatizam as relações do sujeito com a pulsão, cuja satisfação precisa operar desvios suspensivos, desvios esses justamente impostos por estes processos.
Portanto, quando são instalados esses circuitos pulsionais complexos, é que são produzidos as sublimações, objetos, pulsões, angústias e outros afetos, que podem ser conservados, rejeitados, retomados, destruídos, idealizados, reparados, em suma elaborados, assim mediatizados pela criança; o que lhe permite abrir-se para juízos de atribuição e de existência, bem como para possibilidades identificatórias, pelas quais, para ela, o objeto só adquire valor por sua perda real. Essa perda também é a que deixa definitivamente cair alguma coisa no inconsciente, o que exprime o conceito de recalcamento primário.
Sublimações, defesas, apostas atributivas, existenciais ou identificatórias, controle das pulsões e das angústias, recalcamento; são estas as funções tradicionalmente atribuídas, em psicanálise, ao eu. Pois a instância do eu, em ação imediatamente para essas funções vitais, é, na teoria kleiniana, de saída confrontada com um Édipo, que seus objetos imaginários, somados aos da realidade, para fundar sua identidade, colocam em cena precocemente. E, com ele, apresenta-se um supereu feroz e aterrador, que atormenta o sujeito, introduzindo nele seu sentimento inconsciente de culpa.
Todavia, embora M.Klein não teorize exatamente nesses termos, sua concepção de eu pressupõe um sujeito diferente dele, com o qual não pode se confundir. De fato, à medida que as relações objetais substituem por objetos imaginários da realidade exterior, o eu, que comanda as sublimações por ele produzidas, poderia ele se tornar uma coisa diferente desses objetos, como eles trabalhando por processos de tipo sublimatório, como eles dividido por idênticas clivagens, como eles reduzido às mesmas classificações e, finalmente, como eles levado à destinos similares, pela relação com o isso? A partir de suas elaborações sobre a identificação, M.Klein o trata como tal. Mas, desde logo, qual poderia ser a sublimação, senão a de se tornar um sujeito que lhe seja outro, que se divida, para melhor poder subverter e não ter de sustentar unicamente o desejo?
De que modo, na teoria kleiniana, o eu só adquire valor com sua perda real, com seu recalcamento radical, para que advenha o sujeito? Através do supereu.
Para M.Klein, esse conceito está longe de ser apenas a instâncias coercitiva e moral, incluída nas três instâncias criadas por Freud, em sua segunda tópica. Em 1941, para mostrar a Jones as malversações teóricas de A.Freud, ela lhe escreve que o supereu é “o ponto máximo” da teoria freudiana: “Em minha opinião, a psicanálise percorreu um caminho mais ou menos retilíneo, até essa descoberta decisiva, que nunca mais foi igualada”. Esse ponto máximo é, literalmente, o falo da teoria kleiniana. A partir de J.Lacan, o falo é o significante do desejo; toda teoria tem o seu, para adquirir consistência; na teoria freudiana, por exemplo, é a castração. Resgatá-lo permite saber, a partir do significante do desejo que ele conceptualiza, que lei simboliza sua lógica. Portanto, em M.Klein, a lógica do desejo e sua lei adquirem sentido no supereu.
A angústia primária não está relacionada com a castração, mas com um desejo de destruição primordial, que é o desejo de morte do outro real. Esse desejo põe em cena um fantasma, onde o sujeito destrói o corpo materno, para apropriar-se de seus órgãos e, em particular, do “pênis paterno”, “protótipo de todos os objetos” contidos nesse corpo. Não é, pois, apenas o órgão que a criança deseja introjetar em si, mas também um “objeto totêmico”, ou objeto ancestral e protetor; mas, como todo o totem, é proibido obter gozo dele ou daquilo que é ordenado por lei. Sua introjeção traz também consigo o mau: o interdito do incesto, a angústia correlativa, correspondente ao desejo de transgredi-lo, a culpa que o inscreve em uma dimensão moral (ou cultural) e a necessidade de punição, que irá constituir o processo reparador. Na teoria kleiniana, o totem de duas faces, o falo, tem um nome simbólico: o supereu, instância arcaica, no sentido etimológico daquilo que é originário e fundador, daquilo que comanda e dirige, conduz e sanciona, atribui e retoma: “Coisa que morde, que devora e que corta”.
Por isso, o Édipo é pré-genital; sua vivência traumática não pode ser simbolizada pelo “infans”, a não ser pelo discurso de um outro; o recalcamento é secundário a ela, só se sustentando pela parte persecutória do supereu; a relação do pequeno sujeito com essa instância pode prefigurar as futuras identificações com um agressor: portanto, é dela que irão depender os mecanismos identificatórios.
Par despojar a mãe do pênis paterno que ela detém em seu seio, a criança precisa atravessar a primeira fase de desenvolvimento, que é uma “fase de feminilidade”, de uma importância vital e pouco reconhecida até agora, pois, nela, a criança descobre o desejo de possuir um determinado órgão: o pênis do pai. Privar dele a mãe significa, para o sujeito muito pequeno, impedi-la de produzir seus dois principais equivalentes simbólicos: o filho e as fezes; equivalentes que são, em sua a origem, ao desejo de ter, a “inveja”, e ao desejo de perder, o “ódio”. Nesse período precoce do desenvolvimento, a mãe, que leva embora as fezes do filho, também é a mãe que o desmembra e o castra (...). Em termos de realidade psíquica, ela já é, também ela, o “castrador”.
“Também ela”: portanto, o supereu deve ser castrador, conforme as imagos materna e paterna. Para M.Klein, aliás, o filho unifica primeiramente seus dois genitores; só os dissocia para garantir suas alianças imaginárias, quando se envolve em conflitos com eles. Conflitos relacionados ao complexo edípico precoce. Só será possível uma saída pacífica pela identificação somente com o pai. “Por mais forte que seja a influência do aspecto materno na formação do supereu, é, entretanto, o superu paterno que, desde o começo, possui um poder decisório”. Esse retorno ao pai está situado no momento em que o “visível” entra em cena, quando o pênis real “torna-se objeto do olhar”. Essa fase mais narcisista é reparadora, pois nela o pênis passa do interior da cena materna para fora do corpo do outro. Assim, esse real estabelece limites ao imaginário. Que, com freqüência, a mãe seja a fornecedora, isso faz com que seu filho seja capaz de se encontrar; ele então percebe que só pode receber dela aquilo que lhe faz falta. A partir dessa falta, o supereu, aliviado de seu peso, readquire significância totêmica e volta a ser lei do desejo, em lugar de ser um identificante persecutório. Entre as principais obras de M.Klein estão : “A psicanálise de crianças” (1932), “Ensaio de psicanálise” (1947), “Desenvolvimento em psicanálise” (1952) e “Inveja e gratidão” (1957).
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Bibliografia:
ROUDINESCO, ELISABETH - Dicionário de Psicanálise, Jorge Zahar Editor, RJ-1997.
CHEMAMA, ROLAND - Dicionário de Psicanálise Larousse, Artes Médicas, RS-1995.
LAPLANCHE E PONTALIS – Vocabulário da Psicanálise, Martins Fontes, SP-2000.
KAUFMANN, PIERRE – Primeiro Grande Dicionário Lacaniano, Jorge Zahar Editor, RJ-1996.
NASIO, J-D - Introdução às Obras de Freud, Ferenczi, Groddeck, Klein, Winnicott, Dolto, Lacan, Jorge Zahar Editor, RJ-1995.