Em agosto de 1954, um presidente da República anunciou que saía da vida para entrar para a História.
Era a carta testamento de Getúlio.
Em setembro de 2021, em contexto completamente diferente, Bolsonaro também usou uma carta para falar de vida e história.
Anunciou que a sua vida de político antissistema era só historinha.
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É a carta testamento do mito.
Escrita por Temer.
A fama de mito foi construída com uma premissa: Bolsonaro é antissistema.
Coisa que nunca foi.
Ao contrário.
Deixou o Exército pelas portas do fundo e entrou para a política do Rio.
Mas o título de vereador carioca era pouco.
Afinal, o coração do sistema está em Brasília e é pra lá que ele resolveu ir.
Virou deputado federal e largou o mandato de vereador pela metade.
Ainda era pouco.
O sistema podia render mais.
O então deputado criou uma franquia política, possibilitando que a marca Bolsonaro elegesse mulheres, filhos e amigos por quatro décadas.
Funcionava assim: o discurso antissistema garantia votos (foram 115 milhões ao longo da história) e o sistema pagava em dia.
A turma já ganhou 19 eleições e garantiu 76 anos de mandatos somados.
Quase um século de salários.
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Novas possibilidades após 2013.
Surgiram novas possibilidades com as manifestações de 2013.
Bolsonaro e sua franquia perceberam que havia uma massa de ressentidos com a democracia.
Eram brasileiros desiludidos com a Nova República, com a forma como PT e PSDB, com apoio de partidos de programa (aliás, sem programa), comandaram o país após a ditadura.
Popularizada pelo filme "Tropa de Elite", a palavra "sistema" passou a sintetizar tudo o que os ressentidos repudiam.
Instituições democráticas como STF, Congresso, imprensa, partidos políticos e organizações da sociedade civil precisavam se implodidas.
A massa ressentida repudiava as instituições porque procuravam um super-herói, um messias, um mito que estivesse acima delas. Portanto, alguém que fosse antissistema e simbolizasse o novo e a honestidade.
Entra em cena a esperteza política da franquia Bolsonaro.
Dos zeros à esquerda, o filho Carlos foi quem entendeu mais rapidamente que eles poderiam se conectar diretamente com essa massa através de redes sociais.
Elas foram fundamentais para distorcer uma fala do ex-presidente do STF, Joaquim Barbosa, durante o julgamento do mensalão.
Em seu voto, citou que líderes de quatro partidos haviam sido comprados pelo governo petista para votar a favor do projeto de lei das falências.
Conclui que era verdade, porque os deputados desses quatro partidos votaram em peso como orientaram os líderes.
Para reforçar a acusação, Joaquim citou nominalmente Bolsonaro como o único parlamentar que não havia votado a favor.
Bolsonaro e sua máquina de desinformação (na época não se chamava fake news) conseguiram transformar a fala de Joaquim num atestado de honestidade amplo, geral e irrestrito.
Segundo o próprio Bolsonaro, Joaquim teria dito que ele era o único deputado que não havia sido comprado pelo PT no esquema do mensalão.
Outra coisa: como Bolsonaro não estava envolvido nos escândalos de sufixo aumentativo (mensalão e petrolão), apenas nos de sufixos diminutivos (rachadinha), eles contavam que dava para emplacar a imagem de um puro em meio à imundice.
Alguns comportamentos ajudaram a consolidar a imagem de político antissistêmico.
Para os ressentidos, o mito tinha que ser bem diferente da velha política.
Não podia ter qualquer respeito à liturgia do cargo, nada que cheirasse ao decoro de uma Vossa Excelência. E nisso Bolsonaro é craque.
A franquia passou a caprichar no jeitão de maluco, de diferentão.
Aí que entra o absurdo civilizatório: cada frase com tons racistas, homofóbicos, misóginos e de ódio contra minorias reforçavam, para essa massa de desiludidos, a imagem de autenticidade, do homem do povo que fala o que vem à cabeça.
Bolsonaro ia escolhendo seus alvos a dedo: Jean Willys na área do comportamento e Maria do Rosário, na de Direitos Humanos.
Veio a eleição e a faixa presidencial. É óbvio que Bolsonaro não foi eleito apenas por essa massa de desiludidos com a democracia.
Ela estava gritando mito, quando 58 milhões de eleitores pularam nesse cercadinho.
Como presidente, Bolsonaro simbolizava o sistema, mas todos os dias tinha que ir ao cercadinho para parecer antissistema.
Gastou metade de seu mandato neste esforço.
Não trabalhava.
Apenas mantinha a fama de mito.
A história mais recente, todos já sabem.
Sonhou com o autogolpe, não teve força suficiente e se viu obrigado assinar a carta de rendição.
A provisória carta de rendição.
A carta testamento do mito.
Mas que ninguém se iluda.
Politicamente, Bolsonaro não está morto.
Longe disso.
Afinal, a massa de ressentidos com a democracia não deixou de existir.
Parcela dela está decepcionada com Bolsonaro, mas continua à procura de um mito.
Se Bolsonaro não conseguir vestir a fantasia de antissistêmico de novo, a massa vai encontrar outro mito.
A democracia brasileira que se vire para lidar com seus ressentidos.
COMENTÁRIO:
"Outra coisa: como Bolsonaro não estava envolvido nos escândalos de sufixo aumentativo (mensalão e petrolão), apenas nos de sufixos diminutivos (rachadinha), eles contavam que dava para emplacar a imagem de um puro em meio à imundice".
Bolsonaro hoje, é uma carta fora do baralho, politicamente falando !
Valter Desiderio Barreto.
Barretos, São Paulo, 12 de setembro de 2021.
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