A medida, tomada para tentar descobrir quem vazou no governo o relatório do Coaf à revista, viola o direito constitucional do sigilo à fonte; Aner impetra Habeas Corpus em favor do jornalista
A juíza Pollyanna Kelly Alves, da 12ª Vara Federal de Brasília, determinou a quebra do sigilo telefônico do colunista Murilo Ramos, da revista ÉPOCA.
A medida foi tomada secretamente em 17 de agosto.
O jornalista não é
suspeito de nenhum crime.
O objetivo da grave suspensão do direito
constitucional do colunista é um só: tentar descobrir a identidade de
uma das fontes do jornalista.
Na sexta-feira, dia 7 de outubro, após
tomar conhecimento do fato, a Associação Nacional de Editores de
Revista, a Aner, impetrou Habeas Corpus, com pedido de liminar, em favor
do jornalista.
A defesa pede a suspensão imediata da decisão da juíza.
O
HC foi distribuído ao desembargador Ney Bello, do Tribunal Regional
Federal da 1ª Região.
A decisão da juíza foi provocada por representação do
delegado da Polícia Federal João Quirino Florio.
Ele contou com a
anuência da procuradora da República no Distrito Federal Sara Moreira de
Souza Leite.
Em abril do ano passado, o delegado Quirino foi
encarregado de investigar o vazamento à ÉPOCA de um relatório do
Conselho de Controle das Atividades Financeiras, o Coaf.
Nele, os
investigadores do Coaf listavam os brasileiros suspeitos de manter
contas secretas na filial suíça do HSBC, no escândalo conhecido como
Swissleaks.
Em 20 de abril deste ano, após afirmar que Receita,
Coaf e Banco Central não haviam conseguido descobrir a origem do
vazamento, o delegado João Quirino pediu à juíza que quebrasse o sigilo
do colunista Murilo Ramos.
Fez esse pedido antes mesmo de tomar
formalmente o depoimento do colunista, segundo despacho obtido por
ÉPOCA.
“A única maneira de chegar ao autor do crime, que é grave, pois
poderia comprometer todo um sistema de segurança de informações vitais
para o funcionamento de toda uma economia, seria o cruzamento de
chamadas de Murilo nos dias que antecederam a entrevista que (sic)
cruzá-lo com os telefones das pessoas que poderiam ter acesso aos
dados”, escreveu o delegado à juíza Pollyanna Kelly.
Meses depois,
em julho, o colunista de ÉPOCA foi ouvido pela PF.
Não sabia que o
delegado já pedira a quebra de sigilo telefônico.
Recusou-se a revelar a
identidade de fontes envolvidas na produção das reportagem.
Para isso,
invocou, como sempre fazem jornalistas em casos semelhantes, o direito constitucional ao sigilo da fonte.
Esse direito é previsto na Constituição brasileira e consagrado no
ordenamento jurídico da maioria das democracias ocidentais.
Tal proteção
ao trabalho do jornalista está consolidada em leis e nas doutrinas
legais pela simples razão de que, sem ela, a sociedade teria muito mais
dificuldade para ter acesso a informações de interesse público.
Entende-se, inclusive nos principais tratados assinados pelo Brasil,
como o Pacto de San José da Costa Rica, que qualquer obstáculo à
liberdade de imprensa configura-se um obstáculo ao próprio exercício da
democracia.
Não se trata de um direito controverso.
O Supremo Tribunal Federal brasileiro tem posição pacificada sobre o assunto: não se pode violar o direito do jornalista de manter fontes em segredo.
Escrevia, há vinte anos, o decano do Supremo, ministro Celso de Mello:
“A proteção constitucional que confere ao jornalista o direito de não
proceder à disclosure da fonte de informação ou de não revelar a pessoa
de seu informante desautoriza qualquer medida tendente a pressionar ou a
constranger o profissional da Imprensa a indicar a origem das
informações a que teve acesso, eis que – não custa insistir os
jornalistas, em tema de sigilo de fonte, não se expõem ao poder de
indagação do Estado ou de seus agentes e não podem sofrer, por isso
mesmo, em função do exercício dessa legítima prerrogativa
constitucional, a imposição de qualquer sanção penal, civil ou
administrativa”.
Tais princípios internacionais, consolidados
no Direito brasileiro há décadas, foram ignorados pelo delegado João
Quirino e, também, pela procuradora Sara Leite.
Num despacho de três
páginas, assinado no dia 3 de agosto, ela concorda com o delegado da PF.
Assim como João Quirino, não argumenta por que o direito constitucional
ao sigilo da fonte merece ser anulado, nesse caso, em prol da possível
descoberta do autor do vazamento do relatório.
“Verifica-se a
razoabilidade e a necessidade da medida investigativa proposta,
especialmente porque o jornalista, que poderia identificar a pessoa que
lhe forneceu as informações sigilosas, recusou-se a fazê-lo, alegando o
direito de preservar o sigilo da fonte”, escreveu a procuradora Sara
Leite.
Ela chega a argumentar que a entrega dos extratos telefônicos não
configurariam quebra de sigilo telefônico, dado que não há
interceptação do conteúdo das conversas em tempo real.
Diante do
pedido do delegado e da concordância da procuradora, a juíza Pollyanna
Kelly precisou de somente três páginas para decretar a quebra, semanas
depois.
“A medida pleiteada (a quebra do sigilo) mostra-se
imprescindível para apurar os fatos noticiados”, disse a juíza.
“Registro que a proteção constitucional ao resguardo das comunicações
não se mostra absoluta diante do interesse público em esclarecer o
suposto delito.
” Ela determinou às operadoras que enviassem os extratos
do colunista diretamente ao delegado.
No Habeas Corpus impetrado
nesta sexta no Tribunal Regional Federal da 1ª região, a Aner pede a
suspensão dos efeitos da decisão judicial que determinou a quebra do
sigilo telefônico, o sobrestamento da tramitação do inquérito em curso
perante a 12ª vara Federal da Seção Judiciária do Distrito Federal e a
suspensão da quebra do sigilo telefônico.
No caso de a operadora
telefônica já ter fornecido as informações do sigilo telefônico à
autoridade policial, a defesa solicita que elas venham a ser
“absolutamente destruídas” até o julgamento final do HC.
Os
advogados sustentam que a quebra do sigilo telefônico, que é uma medida
cautelar extrema, traz para o jornalista “uma condição inequívoca de
investigado, fato que traduz uma absoluta falta de justa causa, pois
fere o sagrado direito constitucional inerente ao jornalista, que é a
liberdade de expressão e o direito de informar”.
Os advogados lembram,
ainda, que o sigilo de fonte está assegurado pela Constituição Federal
em seu artigo quinto.
Em nota conjunta divulgada neste sábado, dia
8 de outubro, a Aner, a Associação Nacional de Jornais (ANJ) e a
Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão (Abert)
criticaram a decisão da juíza.
“A quebra do sigilo telefônico de um
jornalista implica em gravíssima violação ao direito constitucional do
sigilo da fonte e ao livre exercício da profissão de jornalista”, dizem
as entidades no documento .
“A ABERT, a ANER e a ANJ repudiam a decisão
da juíza e reforçam que não há jornalismo e nem liberdade de imprensa
sem sigilo da fonte, pressuposto para o pleno exercício do direito à
informação.”
Tendência preocupante
O caso
do colunista de ÉPOCA, infelizmente, não é inédito.
Há dois precedentes
recentes – e igualmente inconstitucionais.
No mais grave deles, a PF
indiciou um jornalista do Diário da Região, em São José do Rio Preto,
interior de São Paulo.
Também com apoio do Ministério Público, a polícia
queria descobrir a identidade das fontes do repórter, que revelara o
teor de uma investigação sigilosa sobre corrupção no município.
A
Justiça aceitou quebrar o sigilo telefônico do jornalista.
Foi preciso
que o jornal recorresse ao Supremo para anular a decisão.
Caso semelhante transcorreu ano passado no Superior Tribunal de Justiça.
O governador Fernando Pimentel (PT) pediu a quebra de sigilo telefônico de um jornalista – e voltou atrás.
Seus advogados, Antônio Carlos de Almeida Castro, o Kakay, e Pierpaolo
Bottini, solicitaram ao STJ a quebra de sigilo e o interrogatório de um
repórter do jornal O Globo.
Pimentel queria descobrir as fontes
que vazaram ao veículo informações da investigação que corre contra ele
na corte.
O ministro Herman Benjamin, relator do caso no STJ,
determinou que a PF investigasse, por igual razão, repórteres de ÉPOCA.
Diante da repercussão negativa, os advogados do governador desistiram da
ação.
Em países como Estados Unidos, o sigilo constitucional ao
sigilo da fonte é questionado, e ainda assim sob intensas críticas,
somente quando a Segurança Nacional entra em jogo.
Em 2015 por exemplo, a
Suprema Corte dos Estados Unidos rejeitou apelo do repórter James
Risen, do New York Times, duas vezes vencedor do prêmio
Pulitzer, para não ter de depor e revelar a identidade de uma fonte.
Durante sete anos, Risen lutou para não ter de testemunhar no julgamento
de Jeffrey Sterling, ex-agente da CIA, acusado pelo Departamento de
Estado de passar a Rise informações sobre uma operação secreta do
governo americano para sabotar o programa nuclear do Irã, exposta em um
dos capítulos do livro, “State of war”.
Quando perdeu Risen ficou
sujeito à prisão, caso não colaborasse.
Na investigação, o Departamento
de Justiça obteve secretamente emails e registros telefônicos de
contatos entre Sterling e Risen.
Desde então, Risen afirma que, apesar
da desistência, ao ir tão longe, o governo Obama arranhou a Primeira
Emenda da Constituição americana.
Nos anos pós Wikileaks e Edward
Snowden, as autoridades estatais no mundo todo, mesmo em países de longa
tradição democrática, parecem empenhadas em enfraquecer o já
estabelecido, e mais que necessário, princípio do direito ao sigilo da
fonte de jornalistas.
Um estudo da Unesco de 2015 mostra que entre 2007 e
2014, nos mais de 100 países pesquisados, o direito a sigilo da fonte
tinha sido sistematicamente atacado, seja por legislações referentes a
segurança nacional e antiterrorismo ou submetido a vigilância individual
ou em massa e ainda colocada em risco pela retenção de dados
obrigatória.
“O marco legal que protege as fontes confidenciais de
jornalistas internacionalmente são essenciais para a publicação de
informações de interesse público – informação que de outra maneira
poderia nunca ser descoberta”, diz o documento.
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