Imagens de crimes no carnaval foram a gota d'água para o Governo Federal adotar medida já pensada há mais de 1 ano. G1 lista fatos que mostram colapso da segurança estadual; especialistas comentam.
Por Felipe Grandim, Marco Antônio Martins e Nicolás Satriano, G1 Rio
A intervenção do Governo Federal na segurança pública
do Rio de Janeiro começou a ser planejada há pouco mais de um ano. Em
várias ocasiões, a ideia foi rechaçada pelo governador Luiz Fernando
Pezão. Militares do Ministério da Defesa, ouvidos pelo G1,
contam que a decisão já estava tomada e que havia um plano para ser
implementado a qualquer momento. As imagens de violência durante o
carnaval carioca foram a gota d'água.
A lista de problemas que levaram à intervenção é extensa, de acordo com especialistas e militares:
- fracasso das Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs);
- calamidade financeira;
- expansão da milícia;
- corrida armamentista do tráfico
Problemas que foram amplificados pela crise financeira e política,
seguidas das prisões do ex-governador Sérgio Cabral e do presidente do
MDB no RJ e então presidente da Assembleia Legislativa (Alerj), o
deputado estadual Jorge Picciani, envolvidos em um gigantesco esquema de
corrupção, de acordo com a força-tarefa da Lava Jato no estado.
Na quinta-feira (15), no Palácio do Planalto, diante do presidente
Michel Temer, o ministro da Defesa, Raul Jungmann, e o chefe do Gabinete
de Segurança Institucional (GSI), o general Sérgio Etchgoyen,
apresentaram o plano ao governador Pezão. O general Walter Braga Netto
foi anunciado como o escolhido para ser o interventor.
Publicamente, divulgou-se que o pedido partiu do governador. Jungmann e
Etchgoyen já haviam levado reclamações ao presidente, de acordo com
militares. Estavam irritados com os "vazamentos" das inúmeras operações
feitas em conjunto desde julho passado com as forças de segurança do RJ,
e que teve resultados considerados "pífios" e custos milionários.
Na madrugada de sexta-feira (16), ao retornar ao RJ, Pezão comunicou a
decisão a Roberto Sá, que se surpreendeu. Ao longo do dia, ainda segundo
relatos de militares, enquanto Sá defendia a sua gestão, seus
subsecretários pediam demissão e se despediam de suas equipes. Até a
noite desta sexta, o comandante da PM, o coronel Wolney Dias, e o chefe
da Polícia Civil, Carlos Leba, se mantinham no cargo.
Jungmann e Etchgoyen também não observaram nenhum movimento de que
Roberto Sá trocaria os comandos das polícias Militar e Civil. Apesar do
recorde de apreensões de armas pela PM, de acordo com militares, o
delegado federal não era visto como a figura que conseguiria reverter o
aumento da violência no estado e nem a ação cada vez mais audaciosa de
traficantes.
"Ao invés de perguntas de por que as Forças Armadas estão lá, vocês
devem inverter: por que as polícias não conseguem resultados?",
questionou o general Etchegoyen na coletiva de imprensa que anunciou a
intervenção, em Brasília.
Em inúmeras reuniões com o governo federal, Roberto Sá pediu mais verba
e equipamentos para auxiliar no combate à violência, aumentando o
desgaste e a distância entre o governo federal e o estado. Agora, o
general Walter Braga Netto terá à disposição um grande efetivo podendo
mobilizar ainda militares do Batalhão de Forças Especiais, de Goiânia,
grupo de elite do Exército.
"Essa intervenção atua, como não pode deixar de ser, nas causas, e não
nas consequências desse caos. É, portanto, uma ação paliativa. Além da
intervenção federal, é fundamental reformar as polícias, rever conceitos
e metodologias. Segurança Pública 'boa e barata' não existe", opina o
inspetor Francisco Chao, ex-presidente do Sindicato dos Policiais Civis
do RJ.
Neste sábado (17), o general Braga Netto estará no Rio para reuniões
com autoridades da Justiça, do Ministério Público e da área de
segurança, além do governador Pezão e do presidente Michel Temer. No
decreto que define a intervenção, há detalhes sobre o uso de recursos,
mas não se trata da punição a casos de corrupção de agentes públicos.
"Eu apoio a intervenção porque não se pode deixar o bandido dar as
cartas. Agora, o decreto está capenga. Na ocupação do Complexo do
Alemão, em 2010, nossa maior dificuldade foi punir policiais quando
identificávamos algum problema. O decreto não dá amparo para uma punição
disciplinar. E a gente sabe que há uma banda podre na polícia", afirma o
coronel do Exército Fernando Montenegro, um dos coordenadores da
ocupação pelo Exército do Complexo do Alemão, há oito anos.
A Federação de Favelas convocou uma reunião para este sábado. As
lideranças comunitárias dizem que vão debater essa intervenção e criar
um "gabinete de defesa".
A Ordem de Advogados do Brasil, seccional Rio, explicou, em nota, que
acompanhará as ações das Forças Armadas e convocou uma reunião para
março assim que proposta seja votada pelo Congresso Nacional. A ordem
quer mobilizar entidades e ONGs.
O procurador-geral de Justiça Militar, Jaime de Cassio Miranda, enviou
ofício ao Ministério da Defesa e às forças militares informando que está
à disposição para prestar apoio e acompanhar os trabalhos das Forças
Armadas.
Não faltam motivos para o caos da segurança pública que levou à
intervenção federal no Rio. Entenda abaixo como o estado chegou a essa
situação:
A criminalidade cresce de forma constante desde 2016 no estado do RJ. O
ano da Olimpíada do Rio marca também a derrocada da política de
segurança pública baseada na retomada do controle territorial pelas
Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs). Em outubro, o responsável pela
implantação desse projeto, José Mariano Beltrame, pede exoneração do cargo de secretário de Segurança depois de afirmar várias vezes que os esforços não eram suficientes para combater o crime no estado.
Os sinais, no entanto, já estavam presentes. O número de mortes
violentas e roubos de rua no estado do RJ já tinha aumentando dois anos
seguidos após 2012, e o roubo de carga se tornava uma das modalidades
preferidas dos traficantes para conseguir recursos.
Em 2017, o número de mortes violentas no estado chega a 6.731, um
aumento de 44% em apenas cinco anos, desfazendo a redução temporária
provocadas pelo aumento do efetivo policial e as UPPs.
Mortes violentas voltaram a crescer nos últimos dois anos no RJ
No caso dos roubos de rua - que são mais frequentes e distribuídos,
criando a sensação de insegurança - o crescimento foi ainda maior. O
crimes triplicaram no período, de 58,7 mil para 125,6 mil ocorrências
por ano.
Números de ocorrências cresce desde 2012 e chegou ao maior patamar em 15 anos
Outro fenômeno recente foi o aumento expressivo dos roubos de carga. O
número de registros aumentou 289% nos últimos cinco anos, de 3.656 para
10.599.
Explosão dos roubos de carga
Quantidade de assaltos a caminhões atingiu níveis sem precedentes no estado do RJ
Apenas os números, no entanto, não explicam a necessidade de
intervenção, segundo o ex-secretário nacional de Segurança Pública,
coronel José Vicente Filho.
"Um dos principais motivos de intervenção não é pelo aumento das estatísticas. Há uma qualidade de violência no Rio de Janeiro que é diferente de todo o país. Você tem centenas de comunidades dominadas pelo crime organizado. Os criminosos estão armados com armas de guerra como em nenhum local do país, talvez do mundo", explica.
O Rio vive há 1 ano e 8 meses em estado de calamidade pública.
A recessão econômica do país, aliada à queda das receitas com royalties
de petróleo, à má gestão e à corrupção no plano estadual provocaram uma
crise financeira sem precedentes no governo fluminense.
"Há uma crise de segurança profunda, uma desorganização das forças de
segurança e das forças da legalidade", diz o diretor-executivo da ONG
Viva Rio, Rubem César Fernandes. "Eu acho que as Forças Armadas são o
recurso que a nação tem, que o Brasil tem, e eu não acho que ela esteja
formada para a guerra. Essa é uma noção antiga."
O ex-capitão do Bope e especialista em segurança Paulo Storani acredita
que o mais importante é alterar a lei penal. "Nós temos um problema
muito mais profundo que os problemas de gestão nas instituições
policiais", diz.
Segundo ele, outras intervenções bem-sucedidas foram acompanhadas de legislações mais duras.
"Todas as intervenções que deram certo no mundo vieram acompanhadas que
leis mais duras, mesmo que temporariamente. Muito difícil de falar na
legislação, em razão dos vários vieses ideológicos que dificultam essa
conversa. A lei é permissiva, muito flexível, que permite que o
criminoso seja preso e depois fique em liberdade. "
O alto poder de fogo das facções tem chamado a atenção das autoridades
do governo federal. Em qualquer assalto, os criminosos portam fuzis para
intimidar vítimas - até em estabelecimentos pequenos e sem segurança,
como padarias e bares.
O cidadão fluminense também convivido com trocas de tiros no interior
do estado. Em locais onde não se tinha notícia da presença do tráfico,
atualmente, moradores vivem sob o medo.
A análise é de que a instalação das UPPs na capital levou traficantes
da maior facção criminosa do RJ a invadirem áreas da Baixada Fluminense,
da Região dos Lagos, da Costa Verde e das regiões Norte e Sul
fluminense.
"Hoje, no Rio, acabou aquela história de férias na casa da avó, aquele
lugar bucólico onde você ia descansar. Regiões tranquilas, há alguns
anos, como Angra dos Reis vivem disputas entre traficantes, tirando a paz da região. Isso sem falar em bairros da capital", analisa Zeca Borges, do Disque-denúncia.
Nas comunidades, o som de tiros é cada vez mais comum. E nem unidades militares escapa,. A Marinha abriu um inquérito para apurar as ameaças de um homem armado contra recrutas do Centro de Instrução Almirante Alexandrino, ao lado da favela Kelson's na Penha. Logo após denúncia do G1, o Bom Dia Rio flagrou no local um traficante de fuzil junto ao muro da unidade - o criminosos foi preso pela PM horas depois.
Há dez anos, uma Comissão Parlamentar de Inquérito na Alerj
descortinava a atuação de milícias no Rio. Nesta sexta, com o anúncio de
que o estado está sob intervenção federal na área de segurança, uma das
perguntas a ser feita é se a atuação dos militares também incluirá o
combate aos milicianos.
Segundo integrantes do Ministério Público, os grupos de criminosos já
mudaram a forma de domínio sobre comunidades e têm feito parcerias com o
tráfico para se manterem no poder.
"Temos hoje soldados do tráfico virando milicianos. E também um tráfico
que atua como milícia. Hoje, o tráfico explora 'gatonet', água mineral,
explora gás. E por quê? Porque são dois grupos criminosos que têm um
fim só: lucro ilícito", explica a promotora do Grupo de Atuação no
Combate ao Crime Organizado (Gaeco) Carmem Eliza Bastos.
Em 2008, por meio de informações da Subsecretaria de Inteligência da
Secretaria de Estado de Segurança, a comissão identificou 171
comunidades dominadas por milicianos. Hoje, membros do MP que lidam com
processos relativos à atuação do crime organizado acreditam que muitas
outras áreas do Rio de Janeiro estão sob domínio dos criminosos.
Os confrontos com traficantes estão constantes com disputa de territórios como acontece desde dezembro na região da Praça Seca, na Zona Oeste do Rio.
A violência desenfreada durante o carnaval do Rio é apontada como a
deixa que o Governo Federal precisava para a intervenção. Desde o início
da folia, rodaram o mundo imagens e relatos de crimes cometidos na
cidade que recebe 1,5 milhão de turistas no período. Relembre alguns
fatos marcantes:
- Arrastões: imagens de roubos e agressões na orla mais badalada da cidade, entre Ipanema e Leblon, mostraram agressões a moradores e turistas. Um grupo foi roubado com brutalidade na porta do hotel Fasano, onde se hospedam celebridades internacionais que vêm ao Ri
- Três PMs foram mortos durante os dias de folia
- Dois policiais foram baleados tentando evitar assaltos no Leblon
- Um policial civil de folga foi agredido ao tentar evitar um assalto em Copacabana
- Clientes de um bar no Flamengo foram assaltados no sábado de carnaval
- Um supermercado foi saqueado no Leblon
- Mulher foi assaltada e levou uma 'gravata' na porta de prédio em Ipanema
- Mais um policial foi assassinado no Méier
- A caminho da Sambódromo, a van em que estava a atriz Juliana Paes e o sambista Moacyr Luz, que estava em um táxi, foram abordados por ladrões e assaltados
- Porta-voz da PM orientou foliões a não fazerem selfies para não serem roubados
- em Piraí, na Quarta-feira de Cinzas, Pezão admitiu falhas no planejamento da segurança