Acusada de matar o próprio marido, Susan Kigula estudou Direito dentro da prisão e conseguiu mudar a legislação de seu país, Uganda. Encarcerada por 20 anos, ela ganhou liberdade em 2016
Condenada à morte pelo assassinato de seu parceiro, a jovem Susan
Kigula não se conformou. Ela começou a estudar Direito e conseguiu
salvar sua própria vida e a de centenas de outras pessoas no corredor da
morte de Uganda.
Agora ela quer ir mais longe e criar escritórios
operados por advogados atrás das grades.
Questionada se confessou o assassinato de seu parceiro - como relatou a mídia local - ela responde calmamente.
"Não, querida."
Ela ouviu essa pergunta vezes demais para ficar ofendida.
"Vou te contar minha verdade."
Kigula nasceu na região central de Uganda, onde a atividade principal é a criação de gado.
"Eu cresci sendo a filhinha do papai", conta ela.
"Eu dizia para ele
que queria trabalhar em um banco, porque me parecia um bom trabalho.
E
eu seria forte e independente se tivesse um trabalho.
Eu sonhava muito
com o futuro, porque meus pais me fizeram acreditar que todos os meus
sonhos poderiam se tornam realidade."
Kigula e seus três irmãos tiveram uma infância segura de classe média,
em uma comunidade religiosa pequena e muito unida.
As crianças brincavam
no campo à tarde e jantavam com os pais à noite.
"Minha infância feliz não me preparou para o que viria na vida adulta", conta.
Kigula trabalhava em uma lojinha de presentes em Kampala quando
conheceu Constantine Sseremba.
Aos 28 anos, ele era dez anos mais velho
que ela.
Os dois começaram a namorar e foram morar juntos.
A casa era pequena,
de dois cômodos, mas Kigula diz que era ideal para a família.
Sseremba
tinha um filho de outro relacionamento e logo o casal teve uma filha.
"Nós nos amávamos muito", diz ela.
"As pessoas brincavam que éramos
gêmeos, porque estávamos sempre em sintonia. Não éramos ricos, mas
éramos felizes por termos um ao outro."
Em 9 de julho de 2000, a vida da Kigula mudaria para sempre.
A família jantou junto, como fazia todas as noites.
Kigula, Sseremba e
as duas crianças foram para a cama.
Todos dormiam no único quarto do
apartamento.
A empregada da família, Patience Nansamba, dormia em um
colchão na sala.
Kigula diz que acordou de madrugada ao sentir a nuca ser perfurada por um golpe rápido.
"Senti sangue quente saindo de uma ferida na nuca.
Os lençóis estavam ensopados de sangue, que não era só meu.
"As luzes estavam apagadas, então eu não consegui ver o que estava acontecendo imediatamente."
Kigula conta que sentou na cama, confusa, ao mesmo tempo em que uma luz
das lanternas de segurança acendiam do lado de fora e iluminavam parte
do quarto.
"As crianças não tinham sido machucadas.
Estavam acordadas e chorando.
Constantine estava no chão, gemendo.
Seu pescoço estava cortado", diz
ela.
"Tudo estava acontecendo muito rápido.
A empregada, Patience, entrou no
quarto dizendo que viu duas pessoas saírem correndo do apartamento
segundos antes."
"Minha visão estava turva e eu não conseguia andar direito, mas
consegui sair e pedir ajuda aos vizinhos.
Me enrolaram em um cobertor –
eu não tinha percebido que saí da casa nua."
Kigula ainda estava sangrando pelo pescoço e acabou desmaiando.
Ela acordou horas depois, em um hospital.
A ferida em seu pescoço ainda
doía quando lhe contaram que seu parceiro havia morrido.
Sua família
estava cuidando de sua filha de um ano, Namata, e os pais de Sseremba –
com quem ela tinha uma relação fria e distante – tinham levado o filho
dele, de três anos, para a casa deles.
Ela percebeu que até aquele momento, tinha vivido uma vida feliz: uma
infância alegre, um relacionamento bem sucedido, um bom trabalho.
Agora
tudo isso estava perdido, ela pensou.
O pai de Kigula a avisou que as famílias tinham organizado o funeral de Sseremba para o dia seguinte.
"Eu não conseguia entender o que tinha acontecido ou o porquê.
Quem
quer que tivesse nos atacado tinha ambos como alvo.
Quem poderia querer
ver eu e Constantine mortos?
Pensei muito sobre isso.
Ainda me
incomoda", conta ela.
Não havia uma motivo óbvio para o ataque.
Nada havia sido roubado.
Depois do funeral, Kigula estava voltando do hospital quando ouviu uma
notícia no rádio que a fez congelar.
O locutor anunciava que Constantine
Sseremba e sua mulher de 21 anos, Susan Kigula, tinham sido
assassinados em uma tentativa de roubo.
"Eu pensei: 'Meu Deus, a pessoa que tentou nos matar já tinha
encomendado um obituário duplo, assumindo que nós dois estaríamos
mortos'."
Então, três dias depois, Kigula, recebeu uma visita da polícia.
Ela
ainda estava recebendo tratamento por conta do machucado no pescoço.
Para sua surpresa, eles a acusaram de homicídio e a levaram para uma
prisão de segurança máxima próximo a Kampala, para esperar o julgamento.
A família de Sseremba disse que o filho dele tinha visto Kigula e a empregada matando o seu pai.
"Eu fui ingênua naquele momento", diz ela.
"Eu pensei que era óbvio que
tudo aquilo era um engano.
O menino estava traumatizado e confuso.
Eu
era inocente e me parecia claro que as pessoas iriam ver isso.
Não tinha
ideia de como o sistema jurídico funcionava."
Ela não contratou um advogado.
Não tinha condições de pagar por um e, de qualquer forma, confiava na Justiça.
Dois anos depois, Susan Kigula e Patience Nansamba foram condenadas
pelo assassinato de Constantine Sseremba – com base na testemunha do
filho de Sseremba, então com cinco anos.
A polícia também disse que um
facão ensaguentado encontrado no apartamento pertencia a Kigula.
A condenação veio com uma sentença de pena de morte.
As mulheres foram avisadas que o método seria enforcamento.
Kigula olhou para sua filha, então com três anos, sentada junto a seus pais, e caiu no choro.
Encontro.
Depois de três anos no corredor da morte, em 2005, Susan Kigula conheceu o jovem estudante britânico Alexander McLean.
McLean tinha fundado o projeto African Prisons (Prisões Africanas), por
meio do qual arrecadou dinheiro para criar instalações médicas para uso
de prisioneiros em Uganda.
Kigula começou a trabalhar como sua tradutora e o impressionou desde o início.
Nessa época, Kigula já estava presa havia 5 anos.
"Eu acordava todos os dias pensando: 'É hoje que serei enforcada'", diz ela.
Questionada sobre as condições no presídio, sua resposta é pouco emotiva.
"Prisão é prisão", diz ela, sem explicar.
A jovem dividia uma cela construída para uma pessoa com outras três mulheres.
Elas usavam um balde como banheiro.
Um relatório sobre prisões ugandenses de 2011, feito pela organização
internacional Human Rights Watch, dizia que os prisioneiros dormiam de
lado, tão próximos que não conseguiam mudar de posição.
Eles eram
confinados em solitárias, frequentemente nus, algemados, e às vezes
passavam fome.
As celas às vezes ficavam alagadas, com águas na altura
do calcanhar.
Kigula não gosta de falar sobre essas coisas.
Mas é ávida para contar a história de como obteve sua liberdade.
Tomar uma atitude.
Nas primeiras semanas na prisão, Kigula, então com 24 anos, e as outras
50 mulheres em sua seção conversavam umas com as outras sobre a morte
iminente e sobre quem cuidaria de seus filhos.
"Conforme conhecia as mulheres, percebi que muitas, como eu, tinham
sido falsamente acusadas.
Algumas eram culpadas, mas nenhuma delas
merecia pena de morte pelos crimes que cometeram.
Alguns eram resultado
de anos de abuso físico e sexual que sofriam dos parceiros", conta
Kigula.
"Me tornei uma liderança entre as prisioneiras.
Precisávamos fazer
alguma coisa.
Eu comecei perdoando as pessoas que me colocaram na
prisão.
E depois comecei a por a mão na massa."
Kigula criou um coral, escreveu músicas, começou a fazer esportes e
criou um grupo de dança na prisão.
Para manter-se animada, passava mais
tempo com as prisioneiras que tinham menos pensamentos negativos.
Ela descobriu que os prisioneiros homens tinham acesso à educação,
enquanto as mulheres, não.
Ela pediu à administração para que um pequeno
grupo delas pudesse ter aulas de História, Economia, Teologia e
Administração.
Os responsáveis pela prisão questionaram como ela iria
viabilizar uma escola sem professores.
"Vou começar sendo a professora", ela respondeu.
Elas usavam material didático doado e recebiam notas de estudo da ala masculina.
Tinham as aulas sob a copa de árvores.
Quando os carcereiros viram que a jovem era dedicada, eles ampliaram os
recursos e permitiram um número maior de aulas.
Kigula e algumas de
suas amigas eram as professoras.
Ela diz que uma das pessoas que mais a incentiveram foi Alexander McLean, do projeto African Prisons.
"Eu vi o quanto Susan era dinâmica.
Ela mobilizava e motivava as pessoas", diz McLean.
O jovem britânico vinha trabalhando com autoridades em Uganda para
tentar melhorar as condições não apenas da enfermaria, mas das prisões
como um todo.
Sua ONG patrocinou atividades esportivas, organizou
grupos de leitura para mães e bebês e instituiu aulas de alfabetização
de adultos.
Kigula começou a agir como intermediária entre a entidade e
administração da prisão em um projeto para criar uma biblioteca no
presídio.
Em 2011, ela e um grupo de outras prisioneiras, com apoio do African
Prisons, se tornaram as primeiras prisioneiras ugandenses a fazer um
curso por correspondência na Universidade de Londres, estudando Direito.
O projeto foi um grande sucesso.
Com o passar do tempo, até os carcereiros passaram a pedir conselhos legais a Kigula.
Ela então começou a tocar uma espécie de escritório de advocacia
informal na prisão – ajudava prisioneiras com pedidos de fiança,
escrevia pedidos de recursos e as ensinava como representarem a si
mesmas na corte – caso não pudessem pagar por um advogado.
Ela ajudou
dezenas de colegas a sair da prisão.
Mudar o país todo
Encorajada por seu sucesso acadêmico, ela decidiu, mesmo sem ainda ter o
diploma, organizar pessoas para entrar com um pedido questionando a
pena de morte obrigatória para certos crimes.
"A população de Uganda normalmente é muito conservadora e relutante ao
que pode ser visto como um 'afrouxamento' da lei", diz McLean.
O caso coletivo de Susan Kigula e outras 417 pessoas contra a União é
um caso emblemático.
O objetivo do processo era acabar com a pena de
morte, declarando-a inconstitucional.
Quando a Suprema Corte de Uganda chegou a uma decisão, em janeiro de
2009, a pena de morte não foi abolida.
No entanto, a Corte determinou
que a pena não deveria ser obrigatória em casos de homicídio, e que uma
pessoa condenada não deveria ficar no corredor da morte indefinidamente.
Se uma pessoa condenada não fosse executada em três anos, a sentença
automaticamente se transformaria em prisão perpétua.
E, diante das mudanças, a corte determinou que pessoas no corredor da morte poderiam ter direito a um novo julgamento.
Nova sentença.
Kigula teve um novo julgamento em novembro de 2011.
Dianta da corte pela segunda vez, ela também reencontrou o enteado,
agora com 14 anos.
Sentindo todo o peso de 11 anos no corredor da morte
desabar de uma vez sobre sua cabeça, ela começou a chorar e disse a ele:
"Você não sabe que eu te amo?
Sou sua mãe!".
E, se voltando para a família de seu falecido companheiro, ela disse: "Sinto muito".
A imprensa local descreveu o episódio como se fosse uma cena de novela –
uma confissão de um crime horrível.
No entanto, diz Kigula, não era
isso que ela queria dizer.
"Os jornais mentiram", diz ela.
Segundo ela, foi uma expressão de tristeza por tudo o que seu enteado
havia passado.
Kigula se declarou inocente pela segunda vez, mas a corte
– e a mídia – não estavam convencidos.
A Suprema Corte reduziu a senteça de Kigula para 20 anos.
Descontado o
tempo em que ela ficou presa preventivamente, sua pena terminou em 2016 e
ela foi solta.
Liberdade.
Ela diz que foi como estar em um mundo novo, completamente diferente.
"Foi como ir à Lua!
Eu não podia acreditar no que estava acontecendo comigo", diz ela.
Seu pai tinha morrido enquanto ela estava na prisão e sua mãe foi morta
em um acidente de carro apenas dois meses antes de sua libertação.
Kigula começou a traçar novos objetivos.
Ela queria que as autoridades
reduzissem a sentença das outras 417 pessoas que fizeram o pedido para a
mudança de legislação no país.
Embora dezenas tenham sido libertadas,
como ela, algumas ainda estão atrás das grades.
Trabalhando com Alexander McLean no African Prisons, Kigula quer criar a
primeira escola de Direito do mundo funcionando em uma prisão – e o
primeiro escritório de advocacia.
A ideia é que prisioneiros formados
ajudem os colegas que não podem pagar por representação legal.
"A esperança é criar uma nova geração de advogados que siga os passos de Susan", diz McLean.
"A Justiça em Uganda não é igual à do Reino Unido", afirma ele.
"As
pessoas podem ser presas por serem gays.
Mulheres estão no corredor da
morte por não conseguirem ajuda médica para os filhos em áreas rurais,
ou porque seus maridos cometeram crimes e não podem ser encontrados."
"Claro que há pessoas culpadas na prisão.
Mas nós acreditamos que todo
mundo tem o direito a um julgamento justo.
E de uma segunda chance de
ser útil à sociedade.
Susan sempre se declarou inocente e quer uma
chance de servir a sociedade."
Depois de libertada, Kigula foi morar com a irmã e com a filha, hoje com 19 anos.
"Minha filha diz que eu sou uma heroína.
Era tudo o que eu precisava ouvir depois de 16 anos longe dela."
A vida voltou a ser boa, diz ela.