A
Usina Belo Mont
e, quando construída, deverá produzir cerca de 4.500 MW
em média ao longo do ano, o que representa aproximadamente 10% do
consumo nacional.
Será a terceira maior hidrelétrica do mundo em
potência instalada e a maior inteiramente em território nacional.
Se, em
resumo, desenvolvimento é sinônimo de vida, quem pode ser contra?
“As organizações são raramente questionadas sobre se os sinais de desenvolvimento têm algum significado real para as populações atingidas”.
Já me basta esta reflexão para acompanhar o
pensamento do antropólogo Guilherme Orlandini Heurich, que escreve um dos
artigos que acompanham o dossiê do ISA.
Ele
se pergunta:“Será que algo do tamanho, físico e simbólico, de Belo
Monte pode ser ressignificado por um povo como os Araweté?”
Não preciso conhecer a rotina dos Araweté, povo que
habita uma das terras indígenas afetadas pelas obras para imaginar que
não, eles não conseguem entender que o combustível, as voadeiras e os
fardos de arroz que chegam à aldeia são uma contrapartida para algo que o
homem branco chama de desenvolvimento.
Para aquelas pessoas, segundo o
relato de Orlandiini Heurich, será a morte “do povo do Ipixuna”.
Fato é que, baseados em mais de 50 entrevistas e em
duas dezenas de artigos inéditos, a equipe do ISA decidiu elaborar o
dossiê, esperando que funcione como uma espéciede reflexão sobre o
licenciamentoda Usina de Belo Monte.
O estudo tem o intuito de
“promoverum debate qualificado, que possa influenciar o planejamento, a
execução, a fiscalização e o controle social”.
A conclusão, depois de
tudo o que os técnicos do ISA leram e refletiram, é de que não há
condições para a licença de operação da usina, subtítulo da obra que foi
lançada hoje e pode ser lida no site do Instituto (
veja aqui) .
Um dos principais gargalos, como é fácil de se
prever, foi o aumento da população gerada pelas obras.
De 2011 para cá,
segundo informa o dossiê, de cem mil pessoas a população da cidade
paraense de Altamira, localizada às margens do Rio Xingu, que virou
palco da construção da Usina (
veja aqui)cresceu
para cerca de 150 mil pessoas.
Para diminuir os impactos negativos, o
Ibama exigiu que o consórcio Norte Energia S/A, que está realiando a
obra, cumprisse várias exigências que ainda estão em pendência.
Diz o estudo: “O que se verificou, na elaboração
deste dossiê, é um cenário de descompasso.
A Norte Energia é capaz de
erguer a terceira maior hidrelétrica do mundo e não conseguiu, em três
anos, construir um hospital público em Altamira a tempo de atender à
demanda geral no pico das obras”.
Sim, foram empregados R$ 458 milhões na implantação
de tubos e na estação de tratamento de esgoto e de água mas isso não
garante que a cidade vá ter saneamento básico.
É que este sistema não
foi conectado à casa dos moradores.
A
empresa alega que fez o que foi exigido no Projeto Básico Ambiental
(PBA) e que não é função dela fazer as obras nas casas dos moradores.
O
poder público local não se coça. Corre-se o risco, alerta o dossiê, de
que assim que seja autorizado o barramento do Rio Xingu, “degradem-se as
águas do reservatório”.
A concessão da licença prévia da Usina foi dada há
cerca de cinco anos, e até hoje persistem os problemas na implementação
da infraestrutura de saúde, educação , saneamento básico e de proteção das terras indígenas.
Há problemas que
demonstram uma total desconexão entre realidade e teoria: algumas salas
de aula construídas pela concessionária ganharam modernos aparelhos de
ar condicionado que não podem ser utilizados por inadequação à rede
elétrica.
É mais ou menos como
ganhar uma geladeira de presente que não cabe em sua cozinha.
Os exemplos dessa desconexão se acumulam no dossiê.
Esta é a última etapa do licenciamento ambiental, e não se
pode deixar mais “para depois” a solução dos problemas.
Meu olhar mais
atento vai para a questão das remoções. Segundo o estudo, o
consórcio não levou em conta a peculiaridade dos povos que moram à
beira rio.
Essas famílias normalmente têm duas casas, uma próxima do rio
e outra mais afastada, por questões de conveniência.
Mas, na hora em
que tiveram que optar sobre a melhor forma de serem ressarcidos, essas duas modalidades de moradia foram ignoradas pela concessionária.
Das quase
oito mil famílias que serão atingidas pela barragem, 1.798 já optaram
por uma das formas de compensação.
Só 28, ou seja, 1,5%, escolheram o
reassentamento rural. Outras 1.378 – 75% - optaram por indenizações em
dinheiro e 379 – 21% - preferiram a carta de crédito, um processo onde o
morador escolhe o terreno e a concessionária o compra posteriormente.
O
relatório do ISA conta a história de uma mulher, analfabeta, que optou
pela indenização sem ter muito ideia do que isso significava, e se
arrependeu.
Nos últimos quatro anos, o número de acidentes de
carro em Altamira saltou de 456 por ano para 1.169 por ano, segundo dados colhidos no Hospital Regional.
Na
Terra Indígena de Cachoeira Seca foram extraídos 200 mil metros cúbicos
de madeira só em 2014. Em todas as terras indígenas situadas na área
afetada por Belo Monte houve um crescimento de 16,3% de desmatamento.
A
construção da usina tem tornado as águas do Xingu turvas,
impossibilitando a pesca em algumas regiões.
Essas são algumas questões levantadas
no extenso dossiê que certamente serão contestadas pelo governo e pela
concessionária Norte Energia. Faz parte de um processo polêmico,
grandioso demais.
Há a promessa de que o Xingu não terá mais nenhuma
hidrelétrica, o que é bom.
Até porque, segundo outro estudo divulgado na
sexta-feira (26) pelo Greenpeace e Observatório do Clima (
veja aqui)a diversificação das fontes de energia é fundamental para que se pense em desenvolvimento sustentável.
O dossiê do ISA é a forma de a sociedade civil
exercer o legítimo controle social. Tenho feito contato com situações em
que esse controle tem sido importante para conseguir mudanças
estruturais (
leia aqui).
O próprio estudo do instituto mostra que uma única comunidade no Xingu
conseguiu que o consórcio construísse um bairro à beira rio, como todas
as outras gostariam para continuarem vivendo uma vida parecida.
Houve
mobilização, deu certo.
Nada parecido, no entanto, ao caso do Chile que, no ano passado, rejeitou um projeto de uma enorme hidrelétrica na Patagônia (
leia aqui, em inglês)
com forte mobilização nas ruas. Belo Monte não pode mais ser
paralisado, se tornaria um enorme elefante branco.
Mas há muito que pode
ser feito no sentido de minimizar os impactos socioambientais e, nesse
sentido, o dossiê dá uma valiosa ajuda às autoridades e à empresa.
O
ideal seria que todo mundo pudesse se sentar para resolver as
pendências.
O calendário pendurado no escritório de Altamira da Norte
Energia comemora: “faltam 64 dias para a Licença de Operação”.
Mas, pelo
que se vê, muito ainda precisa ser feito para uma licença definitiva à
obra.
*Crédito da imagem: André Villas-Bôas/ISA