Mesmo depois de sair de empregos públicos, muitos não devolvem imóveis.
Morador tem 30 dias para desocupar o imóvel quando o emprego termina.
Mais uma polêmica na capital federal.
Para morar em alguns dos
endereços mais nobres de Brasília, qualquer um tem que pagar caro.
Mas
muita gente mora quase de graça.
E o pior: os imóveis são públicos,
pertencem a todos os brasileiros.
Miguel Guskov é um dos mais experientes advogados de Brasília. São
muitos clientes.
Mas vem tendo dor de cabeça com um caso em especial: o
dele mesmo.
"No momento oportuno, nós faremos a nossa defesa.", diz Miguel Guskov, ex-subprocurador da República.
Ele já foi subprocurador geral da República, um defensor das leis.
Deixou a função há 10 anos.
Saiu do emprego público, mas não saiu da
casa no Lago Sul, em Brasília, que já na época deveria ter sido
devolvida para a União.
A casa é um imóvel funcional.
O sistema de imóveis funcionais foi criado junto com Brasília, há 55
anos, quando a nova capital não tinha lá grandes atrativos.
A moradia
quase de graça servia para conquistar funcionários públicos da antiga
capital, o Rio de Janeiro.
“Foi essencial para a implantação de Brasília que houvesse a criação de
apartamentos funcionais”, explica Frederico Flósculo arquiteto da UNB.
Hoje, os profissionais vêm de todo o Brasil.
Mas a regra básica
continua a mesma: quando o emprego público termina, o morador tem 30
dias para desocupar o imóvel, que também é público.
Ainda existem 10 mil imóveis funcionais em Brasília.
São alguns dos
endereços mais valorizados do Brasil: a menos de 5 km da Esplanada dos
Ministérios.
Se fossem alugados por meio de uma imobiliária, por
exemplo, os inquilinos teriam que desembolsar entre R$ 4 mil e R$ 6 mil
por mês.
Mas, por serem imóveis funcionais, os ocupantes não gastam nem
um décimo do valor de um aluguel normal.
O problema é quando o morador
temporário deixa o cargo público, mas decide ficar no imóvel meses,
anos, décadas até.
Nos 10 anos em que morou irregularmente na casa do Lago Sul, Miguel
Guscow pagava apenas a taxa de ocupação: no máximo R$ 862 por mês.
Em
dezembro do ano passado, foi acionado e finalmente mudou de endereço.
Fantástico: Por que o senhor ficou tanto tempo numa casa que pertence a todos os brasileiros?
Miguel Guskov, ex-subprocurador da República:
Na realidade, eu fiquei na casa porque, quando me entregaram essa casa,
bem no início, essa casa estava totalmente destruída.
Eu tive que
aplicar ali pra uma reforma da casa US$ 150 mil.
A discussão sobre a posse de imóveis funcionais envolve outros
moradores.
São mais ou menos 400 processos judiciais.
De um lado a União
querendo recuperar o bem, do outro, ocupantes ilegais querendo ficar.
José Assis também se achou no direito de ir ficando mesmo depois de
deixar o emprego público no Denit, Departamento Nacional de
Infraestrutura de Transportes.
Foi há um ano.
Hoje ele não paga nem a
taxa de ocupação.
Fantástico: Como contribuinte, você acha justo morar de graça?
José Assis: Não acho.
Ele diz que ficou no imóvel funcional, porque as obras da casa que está construindo nos arredores de Brasília atrasaram.
Em 1990, quando Brasília já era uma cidade grande, com oferta
imobiliária suficiente para receber novos funcionários públicos, o
governo começou a botar à venda os imóveis funcionais.
De lá para cá,
cerca de 30 mil foram vendidos.
Fantástico: A senhora é a Silvane Tomás Ferreira?
Silvane: Eu mesma.
A casa está sem manutenção faz tempo, mas não é desleixo.
É parte da
estratégia da moradora, viúva de um ex-funcionário público.
Ela tenta
ganhar na Justiça o direito de comprar o imóvel funcional, que deveria
ter sido devolvido há 12 anos.
E quer pagar o menor preço possível pela
casa.
Fantástico: Ela não está bem cuidada?
Silvane:
Não.
E o advogado me orientou a não fazer reforma, porque a reforma que
eu fizer eles vão vir avaliar em cima.
A União precisa disso aqui pra
quê?
Seu Sebastião, ex-mecânico e ex-motorista do Ministério do Trabalho,
mora em um imóvel funcional há 30 anos, 25 de forma irregular, depois
que se aposentou.
Ele diz que nunca foi avisado de que precisava
devolver o apartamento.
“Ninguém nunca me falou nada disso”, diz Sebastião.
“Eu acredito que houve um certo cochilo”, diz o desembargador Antonio de Souza Prudente.
Souza Prudente é um dos desembargadores federais dispostos a acabar com
a farra dos imóveis funcionais.
Além de exigir, imediatamente, o imóvel
de volta, ele e outros juízes passaram a cobrar uma indenização pelo
tempo em que o ex-funcionário morou praticamente de graça.
O valor da
indenização é calculado pelo que seria o aluguel de um imóvel do mesmo
padrão, de acordo com o mercado imobiliário.
“Um processo como este, em que alguém fica vários anos abusando de um
bem imóvel da União, enfim, pagando uma ninharia, uma taxa irrisória por
ocupar um próprio nacional, é um processo injusto.
Já pelo tempo, pela
demora em sua solução, ele se torna injusto”, explica o desembargador.
Quem comanda a maior força-tarefa para recuperar os imóveis ocupados ilegalmente é a Advocacia-Geral da União.
“Existe um princípio maior que é evitar o enriquecimento indevido. Sem
causa.
A pessoa ocupou o imóvel indevidamente, onde a administração
poderia estar com outro agente público seu ocupando, atendendo o
interesse público da administração”, diz o procurador da Advocacia-Geral
da União José Roberto Farias.
Fantástico: Por ter ficado numa casa que no fundo pertence à nação, nesse sentido o senhor não se arrepende?
Miguel Guscow: Eu
não me arrependo porque a União se apropriou do meu esforço, do meu
trabalho, de US$ 150 mil, se apropria e provavelmente agora venha a
querer cobrar aluguel sobre esses US$ 150 mil, que é totalmente injusto.
O investimento que Miguel Guscow usa em sua defesa seria de quase R$
500 mil.
Parte disso está registrada no processo que determinou a saída
dele da casa.
A Procuradoria-Geral da República, dona da casa, não permite gravações
dentro do imóvel, o que nos impediu de comprovar se houve qualquer
reforma interna.
No jardim, o que se vê é uma ampla área de lazer, com
churrasqueira e salão de festas, além de um canil.
O problema é que essas construções jamais poderão ser agregadas ao
valor da casa.
É que tudo isso foi feito nos fundos do terreno, numa
área verde que, no setor residencial de Brasília, deve ser deixada como
espaço livre, a norma consta do Plano Diretor de Brasília.
Do ex-subprocurador, tão conhecedor de regras e leis, a União quer receber uma indenização que pode passar de R$ 1 milhão.
“Vai ter um efeito pedagógico.
É mais que a questão de legalidade
propriamente, mas moralizante.
Um patrimônio público foi utilizado
indevidamente.
E esse pedagógico quer dizer 'não vale a pena'”, diz o
procurador José Roberto Farias.