Doutor é quem tem doutorado. Simples assim.
O Manual de Redação da Presidência da República do Brasil – cujo autor foi ninguém menos que Gilmar Mendes, ministro do Supremo Tribunal Federal – é bem direto:
“Acrescente-se que “doutor” não é
forma de tratamento, e sim título acadêmico.
Como regra geral,
empregue-o apenas em comunicações dirigidas a pessoas que tenham tal
grau por terem concluído curso universitário de doutorado.“
O texto é explícito: apenas é doutor quem concluiu um doutorado.
Ainda assim, existem advogados que, mesmo sem terem jamais feito um doutorado, exigem ser chamados de “doutor“, sob os mais variados argumentos, que incluem desde lendas urbanas completamente falsas até deturpações de textos legais.
Uma dessas lendas urbanas é a de que todo
advogado teria recebido o título de doutor por um alvará de dona Maria
I, rainha de Portugal.
Como em tempos de Internet é fácil verificar que
tal alvará nunca existiu, os antigos defensores da falsa lenda trocaram o
foco, passando a distorcer um decreto que de fato existiu – a Lei Imperial de 11 de agosto de 1827.
Segundo afirmam, a tal lei, da época do Império, teria determinado que todo bacharel em Direito seria automaticamente doutor.
A referida lei, no entanto, está disponível na íntegra na Internet, aqui, para quem quiser lê-la – e ver que a lei definitivamente não diz isso.
O que a lei de fato fez foi criar dois
cursos de ciências jurídicas e sociais, um na cidade de São Paulo e
outro na cidade de Olinda.
Em artigos secundários, estabeleceu
disposições específicas sobre esses dois cursos – por exemplo, que o
salário dos docentes desses cursos deve ser de 800 mil réis, e que cada
uma dessas faculdades poderia contratar um porteiro, com salário de 400
mil réis.
Se a lei ainda estivesse integralmente válida, os salários
teriam de ainda ser exatamente esses, é claro.
Mas sigamos.
Adiante, diz a lei que: “Os que
freqüentarem os cinco annos de qualquer dos Cursos, com aprovação,
conseguirão o grau de Bacharéis formados.
Haverá também o grau de
Doutor, que será conferido àqueles que se habilitarem com os requisitos
que se especificarem nos Estatutos.“
Ou seja: em ponto nenhum da lei se dizia
que todo aquele que concluísse os cursos seria doutor.
O que a lei diz,
sim, claramente, é que todo aquele que fosse aprovado nos cinco anos do
curso de Direito receberia o grau de bacharel; e que existiria também o
grau de doutor, que seria conferido àqueles que se habilitassem com os
requisitos especificados “nos Estatutos”.
Mas que “estatutos” são esses?
Felizmente, para ninguém ficar em dúvida, os estatutos vêm no
próprio texto da lei (integralmente disponível no site da Presidência da República, aqui).
E os tais estatutos trazem um capítulo inteiro dedicado justamente ao tema:
“CAPITULO XIII – DO GRAU DE DOUTOR:
1º Se algum
estudante jurista quizer tomar o grau de Doutor, depois de feita a
competente formatura, e tendo merecido a aprovação nemide discrepante,
circumstancia esta essencial, defenderá publicamente varias teses
escolhidas entre as materias, que aprendeu no Curso Juridico, as quais
serão primeiro apresentadas em Congregação; e deverão ser aprovadas por
todos os Professores.
O Diretor e os Lentes em geral assistirão a este
ato, e argumentarão em qualquer das teses que escolherem.
Depois
disto assentando a Faculdade, pelo juízo que fizer do acto, que o
estudante merece a graduação de Doutor, lhe será conferida sem mais
outro exame, pelo Lente que se reputar o primeiro, lavrando-se disto o
competente termo em livro separado, e se passará a respectiva carta.
2º As cartas,
tanto dos Doutores como dos Bacharéis formados, serão passadas em nome
do Diretor, e pro ele assinadas, e levarão um selo próprio, que lhe
será posto por ordem do Professor, que houver dado o grau.“
Como fica claro a qualquer pessoa que sabe ler português, o texto é explícito: nenhum
bacharel em direito ganharia automaticamente o título de doutor.
O
título de doutor só seria conferido pela faculdade ao estudantes
juristas que, depois de formados, apresentassem e defendessem, ante
professores, tese específica de doutoramento.
Em outras palavras, aplica-se aos estudantes de Direito
o mesmo processo pelo qual qualquer outro bacharel, de qualquer outra
área, pode tornar-se doutor: defendendo uma tese de doutorado.
Há ainda os que fazem malabarismo
argumentativo seletivo, considerando válida a lei mas não os estatutos a
ela anexos; dizem, assim, que o “estatuto” seria o estatuto da Ordem
dos Advogados do Brasil (que nem existia à época da lei).
O problema é
que também basta ler o estatuto da OAB para ver que a própria OAB em
nenhum momento trata do título de doutor.
Enfim, é evidente que falta com a verdade qualquer um que defenda que todo advogado brasileiro é automaticamente “doutor”.
A questão é se sequer merece confiança um profissional que defenda publicamente haver argumentos legais segundo os quais “todo advogado é doutor” – quando uma rápida análise dos supostos argumentos revela inequivocamente a falsidade de tal afirmação.
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