O ministro da justiça Alexandre de Moraes fala com a imprensa em Brasília sobre as prisões feitas pela operação Hashtag. Dez pessoas foram presas em sete estados


Com sua careca lustrosa, o ministro da Justiça, Alexandre de Moraes, superou ontem todos os fios de cabelo do penteado cuidadosamente esculpido de Donald Trump. 

A quinze dias da abertura da Olimpíada do Rio, Moraes convocou uma entrevista coletiva para fazer um anúncio bombástico: a Polícia Federal (PF) desbaratara um grupo ligado ao Estado Islâmico (EI) que planejava atentados no Rio de Janeiro.

Não se tem muita ideia do que os dez presos tinham em mente. “Eram extremamente amadores”, disse Moraes. 


Sabe-se que trocavam mensagens com codinomes árabes em grupos do WhatsApp e do Telegram. 

Celebravam cada ato terrorista do EI, como o ataque em Nice na última semana. 

Aparentemente, tramavam treinar artes marciais e comprar um fuzil-metralhadora no Paraguai. 

Foi o suficiente para convocar entrevistas coletivas de Moraes, do ministro da Defesa, Raul Jungmann, e do juiz do caso, Marcos Josegrei da Silva, da 14.ª Vara Federal de Curitiba.

O objetivo foi tranquilizar a nação quanto ao risco de atentados na Olimpíada. 


O efeito foi o contrário. 

As respostas das autoridades aos jornalistas revelam apenas que são tão amadoras no combate ao terrorismo quanto o grupo desbaratado. 

Ao que tudo indica, a PF fez seu trabalho. 

Ao chamar atenção para ele com espalhafato, contudo, o governo prestou um desserviço não apenas ao Brasil.

Até agora, até podemos nos considerar um país de sorte no que diz respeito ao jihadismo. 


O crime organizado comanda o tráfico das prisões e promove uma violência hedionda. 

Mas age segundo uma lógica previsível, movida por interesses definidos. 

O terrorismo islâmico tem uma natureza distinta. 

É movido por uma ideologia homicida e suicida, cujas vítimas têm passado longe daqui.

Não que estejamos imunes a riscos. A Tríplice Fronteira entre Brasil, Argentina e Paraguai serviu de passagem para os xiitas do Hizbollah que explodiram em 1994 a sede da Associação Mutual Israelita Argentina (Amia), já recebeu a visita do líder da Al-Qaeda Khalid Sheik Mohammed, articulador dos atentados de 11 de Setembro, e é objeto de frequentes alertas do governo americano. 


Mas nunca houve atentado contra alvos brasileiros.

O EI representa, contudo, um desafio de outra natureza, mesmo dentro da lógica do jihadismo. 


Usa as mais modernas tecnologias digitais para aliciar seus recrutas em todo o mundo. 

Sua escatologia apocalíptica considera legítimo atacar, por quaisquer meios possíveis, qualquer infiel (tafkir), uma categoria que inclui cristãos, judeus e muçulmanos que não professam a vertente salafista radical da religião praticada pelo EI, com práticas bárbaras e medievais.

Uma Olimpíada na cidade em que o Cristo Redentor abre seus braços sobre a Baía da Guanabara é evidentemente motivo para preocupação. 


O EI conclamou seus seguidores a cometer ataques durante os Jogos. 

Natural que tenham atendido ao chamado daquele que se autoproclamou “califa”. 

Deve haver bem mais de dez simpatizantes do EI no Brasil. 

A questão não são os amadores presos ontem. 

São os profissionais, como Mohamed Lahouaiej Bouhlel, que planejou durante meses o atentado de Nice sem ser descoberto.

O EI levou o combate ao terror a um novo patamar de dificuldade. 


Muito se discutiu ontem como a PF obteve acesso às discussões do grupo no WhatsApp, aplicativo cujas mensagens são trocadas de modo seguro (as possibilidades foram aventadas por meu colega Altieres Rohr em seu blog). 

Trata-se, porém, de questão secundária, num caso que levanta outras bem mais inquietantes.

Nada mais esperado, num país afeito à divulgação de grampos da PF contra políticos, que a imprensa se debruce sobre a investigação como se viesse de Curitiba mais uma fase da interminável Operação Lava Jato. 


Nada mais ingênuo também. 

A modalidade de terror praticada pelo EI representa um desafio novo para o mundo. 

Um desafio para o qual as autoridades e a imprensa brasileira mostraram ontem estar absolutamente despreparadas.

A primeira e mais importante arma do EI é a publicidade. 


O grupo descobriu que não é preciso uma coordenação central para lograr uma repercussão intensa para a sua causa. 

Basta incentivar a ação individual dos simpatizantes, “lobos solitários” como Bouhlel, que avançou contra a multidão que celebrava o 14 de Julho em Nice e deixou pelo menos 84 mortos e mais de 200 feridos.

Bouhlel atendeu ao chamado divulgado em setembro de 2014, por Abu Mohammad al-Adnani, o porta-voz e uma espécie de Goebbels do EI. 


Al-Adnani conclamou muçulmanos em países ocidentais a promover ataques por todos os meios possíveis contra autoridades e civis. 

Esse tipo de ataque é mais crítico ainda num momento em que o grupo perdeu algo como 25% do território que controlava na Síria e no Iraque. 

O EI precisa mais que nunca dos atentados para demostrar seu poder aos simpatizantes e arrebanhar novos recrutas.

Por isso mesmo, os atentados colocam as autoridades e a imprensa diante de um dilema. 


Impossível evitar a repercussão do morticínio sangrento promovido por Bouhlel em Nice, das chacinas cometidas por grupos coordenados em Paris em novembro passado ou dos ataques ao jornal satírico Charlie Hébdo e ao supermercado judaico Hipercacher em janeiro de 2015. 

Mas será que dez simpatizantes tramando por WhatsApp comprar uma AK-47 no Paraguai justificam pronunciamentos de dois ministros e um juiz? 

Não é essa exatamente a reação que o EI deseja com sua estratégia de gerar a maior dor e repercussão possível com o mínimo de esforço e planejamento?

O EI é, de longe, o maior problema enfrentado hoje pela humanidade. Nada se lhe compara em matéria de complexidade. 


Com sua ideologia mortífera, aproveita as brechas oferecidas pela cultura, pela política e pela tecnologia ocidentais para promover um extermínio de valores humanos comparável ao defendido por Hitler, Stálin, Pol Pot e demais genocidas.

Embora não tenha atingido em vidas ainda a mesma dimensão, o jihadismo não desaparecerá tão cedo. 


Autoridades francesas, belgas, americanas e de vários outros países têm dificuldade para lidar com o desafio. 

Não há como evitar 100% dos atentados, nem como impedir que o EI se aproveite da repercussão naturalmente gerada por eles. 

Mas combater o EI exige uma ação inteligente nas duas frentes.

Na frente policial, a PF e as Forças Armadas dizem estar preparadas para dar a atenção necessária ao combate ao terrorismo nos Jogos. 


Como é impossível antever todas as ações jihadistas, tal preparo sempre é relativo. 

É preciso, acima de tudo, evitar os erros da polícia francesa, que deixou de policiar um longo trecho da Promenade des Anglais em Nice. 

Mas não há motivo para duvidar da diligência dos nossos investigadores, soldados e policiais.

Na frente da comunicação, a situação é outra. 


As autoridades agiram ontem com um amadorismo absoluto e só fizeram contribuir para a estratégia do EI. 

Será lamentável se for preciso acontecer uma tragédia para que Moraes e companhia descubram o tamanho de seu erro.