Em 1884, Silvio Romero escreve no prefácio da tradução de Carlos Jensen
para Robinson Crusoé:
Ainda alcancei o tempo em que nas aulas de primeiras letras aprendia-se
a ler em velhos autos, velhas sentenças fornecidas pelos cartórios dos
escrivães forenses. Histórias detestáveis e enfadonhas em suas impertinentes
banalidades eram-nos ministradas nesses poeirentos cartapácios. Eram como
clavas a nos esmagar o senso estético, a embrutecer o raciocínio, a estragar o
“caráter”1.
Apesar dos comentários de Romero, a literatura infantil brasileira ainda
estava longe de uma identidade própria – e mesmo longe de existir: no ano
daquele prefácio, o verdadeiro criador da literatura brasileira contava com
apenas dois anos de idade.
Contos da Carochinha, de Alberto
Figueiredo Pimentel, compilação de 61 contos populares de vários países, entre
eles alguns de Perrault, foi o primeiro livro infantil aparecido em português,
em 1896. Até a era de Monteiro Lobato, havia somente contos de fundo
folclórico, e o tema e a moralidade das narrativas, sempre os mesmos de
gerações antigas, eram aproveitados da tradição européia por autores
brasileiros.
Produções originais, traduções ou adaptações começam com Olavo Bilac,
Júlio César da Silva, Arnaldo de Oliveira e Tales de Andrade – este último
publicou, em 1918, A Filha da Floresta. Entretanto, Ardersen, Perrault,
Collodi, Grimm, Carroll, Burger e Barrie permaneciam desconhecidos dos leitores
brasileiros.
Sítio do Picapau Amarelo
•gênese do sítio
Carlos Drummond de Andrade questionava a existência de uma “literatura
infantil”. Para o poeta, haveria talvez apenas uma literatura mais apreensível
pelas crianças, o que de nenhum modo impediria que adultos a considerassem de qualidade
comparável às da “literatura para adulto”.
Estética apreensível fora sempre uma das primeiras preocupações
artísticas de Monteiro Lobato, a começar pela polêmica junto dos modernistas da
Semana de 22, antecedida, aliás, pelo desenraizamento cultural através de
elementos folclóricos na produção artística brasileira.
Partindo então da apreensão estética, a rememoração dos textos
“infantis” existentes no país anteriormente a Lobato lança importante luz no
significado inicial de sua obra, ainda antes de se partir para o valor
propriamente literário:
O bicho de cozinha deitou água fervente na caçoula atestada de
beldroegas, e, asinha partiu na treita dos três mariolas...2
Geralmente traduzidos para o português de Portugal e lançados no Brasil,
os livros com que as crianças contavam, a tirar pelo exemplo acima, não podiam
interessar nem a crianças nem a adultos.
Perplexo com a pobreza de histórias em livro que pudessem ser contadas a
seus filhos, Lobato se empenhou em contar histórias do jeito que as crianças
não só entendem mas gostam – e mais que gostar ou entender: uma históroia que
falem com elas e como elas.
Começa com uma partida de xadrez, em 1920, quando um amigo conta ao
adversário de partida uma certa história de um peixinho que morreu afogado.
Imediatamente acende no escritor a necessidade de escrever aquela história.
Finda a partida e despedido o amigo, corre para a máquina de escrever arriscar
sua empresa. Surgia seu primeiro texto infantil: A história do peixinho que
morreu afogado.
A esse texto (que se perdeu com o passar dos anos) o escritor foi
juntando memórias da infância, histórias contadas pelos negros da fazenda do
avô, as brincadeiras na mata, o medo de assombrações suscitado pelas histórias
dos nativos, pescarias, caças, os brinquedos de sabugos de milho e trapos
confeccionados pelo menino Lobato e as irmãs...
A Menina do Nariz Arrebitado3 é o primeirio volume em que o autor
reúne a série de textos infantis produzidos desde “O peixinho que morreu
afogado”. E é com este título que o autor empreende o célebre “teste dos 5oo
exemplares”: envia às escolas exemplares do livro, antes de colocá-lo em
circulação, para saber da reação das crianças. Resultado disso foi uma acolhida
sensacional por parte de alunos e professores.
Washington Luís, de visita a uma escola, se impressionou com a disputa
entre as crianças por um livrinho sujo e rasgado de tanto manuseio, e quis
saber de que livro se tratava. Desse modo decidiu, o então governador do
Estado, a adotar o livro e distribuí-lo em toda a rede. Contatado, o
escritor-editor Monteiro Lobato afirmou ter pelo menos 30.000 exemplares
disponíveis (a primeira tiragem fora de 50.000). Pensando se tratar de uma
brincadeira, W. Luís se dispôs a ficar com a quantia estimada. Para sua
surpresa foram entregues no prazo os milhares de livros.
• estética do Sítio
Era um vestido que não lembrava nenhum outro desses que aparecem nos
figurinos. Feito de seda? Qual seda nada! Feito de cor – e cor do mar! Em vez
de enfeites conhecidos – rendas, entremeios, fitas, bordados, plissês ou
vidrilhos, era enfeitado com peixinhos do mar. Não de alguns peixinhos só, mas
de todos os peixinhos – os vermelhos, os azuis, os dourados, os de escamas
furta-cor, os compridinhos, os roliços como bolas, os achatados, os de cauda
bicudinha, os de olhos que parecem pedras preciosas, os de longos fios de barba
movediços – todos, todos! ...Foi ali que Narizinho viu como eram infinitamente
variadas a forma e a cor dos habitantes do mar. Alguns davam idéia de
verdadeiras jóias vivas, como se feitos por ourives que não tivesse o menor dó
de gastar os mais ricos diamantes e opalas e rubis e esmeraldas e pérolas e
turmalinas da sua coleção. E esses peixinhos-jóias não estavam pregados no
tecido, como os enfeites e aplicações que se usam na terra. Estavam vivinhos,
nadando na cor do mar como se nadassem n’água. De modo que o vestido variava
sempre, e variava tão lindo, lindo, lindo, que a tontura da menina apertou e
ela pôs-se a chorar. (...) O mais lindo é que o vestido não parava um só
instante. Não parava de faiscar e brilhar, e piscar e furtar-cor, porque os
peixinhos não paravam de nadar nele, descrevendo as mais caprichosas curvas por
entre as algas boiantes. As algas ondeavam as suas cabeleiras verdes e os
peixinhos brincavam de rodear os fios ondulantes sem nunca tocá-los nem com a
pontinha do rabo. De modo que tudo aquilo virava e mexia e subia e descia e
corria e fugia e nadava e boiava e pulava e dançava que não tinha fim...
O trecho acima, extraído de um capítulo de Reinações de Narizinho,
ilustra o forte apelo visual da narrativa lobatiana. A inclinação do escritor
às belas artes renderam à sua literatura (tanto na versão infanto-juvenil como
na versão adulta) uma plasticidade formidável. Como ele mesmo chegou a dizer,
na escrita procurava “pintar com palavras”.
E na elasticidade conferida à lingua em Monteiro Lobato se encontra o
essencial para o dinamismo dos textos e a própria subversão do mundo, abertura
para uma multiplicidade de sentidos. Se Lobato costuma em seus textos chamar as
coisas pelos seus nomes, não quer dizer que o sentido dicionarizado,
gramaticalizado, formal, seja o seu condutor. Pelo contrário: os nomes de que o
escritor se serve em seus livros são sempre os de maior expressividade,
independente da ordem ocupada nos tratados linguísticos.
Condutor de identidade cultural que era, protestava contra as reformas
gramaticais subordinadas a leis, afirmando que o dono da língua era o povo e a
gramática, sua criada. Também não significa, claro, que a negligência
linguística é parte da obra de Lobato. As cartas remetidas a Godofredo Rangel
atestam o aprofundamento intensivo do escritor na questão, às voltas com
estudos e intenções de ler compêndios inteiros.
Resultado disso é que, para ele, a necessidade de expressão e a própria
expressividade linguística estavam à frente das formas gramaticais, que
naturalmente não fizeram senão registrar conquistas decorrentes da expressão
utilizada pelos povos. Chegou a forjar palavras, muitas das quais hoje figuram
no dicionário, como o verbo “asneirar”, por exemplo. A própria boneca Emília
faz uma visita ao País da Gramática e conversa seriamente com as ortografias
Etmológica e Moderna, aprendendo muito e palpitando sempre, cismada com algumas
convenções e, dialogando com o Verbo Ser, trata-o por “Vossa Serência”.
Alguns termos criados por Lobato: jeca (na verdade o nome de um sujeito
raquítico e arredio que conhecera e serviu de inspiração para o batismo de Jeca
Tatu. Tatu também deriva da mesma pessoa, que assim era conhecida pelo hábito
de se esconder dos outros), faminteza, galanteza, pantasma (resultado de uma
implicância de Emília com a ortografia etmológica, quando a boneca,
horrorizada, constata a insistência em se escrever “fantasma” com ph), pernilonguíssimo,
mentirada, nenhumíssima, pequeninando, perguntativos, fedorência...
Também expressões hoje de certa forma até corriqueiras na literatura
infantil foram inauguradas pelo escritor, como, por exemplo: “Até o espelho
arregalou os olhos de espanto”. Uma das mais hilárias passagens, para ilustrar
a amplitude semântica que termos já conhecidos adquirem num texto de Lobato,
encontramos no início dA Reforma da Natureza, quando Emília, sozinha no
Sítio, escreve uma carta à uma amiga da cidade, reclamando companhia:
“Querida Rã:
Estou só – só-só-ró-só-só! Todos foram para a e Europa arrumar aqueles
países mais amarrotados do que latas velhas e agora preciso que você venha
passar uma temporada aqui. Você é das minhas: das que não concordam. Podemos
realizar aquele nosso plano de reforma da Natureza. (...) Eles partiram esta
manhã e eu já estou me sentindo muito “tênia”...” (Depois que Emília soube que
“solitária” era sinônimo de “tênia”, passou a empregar a palavra “tênia” em vez
de “solitária”. “Não é gramatical” – dizia ela – “mas é mais curto”.
O escritor baiano Jorge Amado ressaltou em certa entrevista a riqueza
literária em Monteiro Lobato. Contudo havia uma objeção: as crianças do Sítio
só entrariam no faz-de-conta através do “Pó de Pirlimpimpim”, o que talvez
resultasse em frustração dos pequenos leitores, que não dispunham do antídoto.
Toda a obra de Lobato oferece passagens mais que suficientes para desfazer tal
mal-entendido, mas um trecho de Reinações de Narizinho bastaria para
isso, provando o manejo cuidadoso de Lobato entre sonho e realidade – que em
seus textos não se separam:
Horrorizadas com a feiúra da velha, Narizinho fechou os olhos. Depois criou
coragem e os foi abrindo devagarinho. E viu... Sabe quem? Viu Tia Nastácia a
olhar para ela e a dizer:
-Acorde, menina! Parece que está com pesadelo...
Narizinho sentou-se na cama, ainda tonta, esfregando os olhos.
-E vovó? – perguntou.
- Lá dentro, costurando.
-E Pedrinho?
-Fazendo uma arapuca no quintal.
-E... e Tom Mix?
-Deixe de bobagens e venha tomar o seu café que já está esfriando –
rematou Tia Nastácia.
À primeira vista, fragmentos como esse só confirmam o quão distantes se
acham entre si fantasia e realidade em Lobato. Narizinho, afinal, se encontrava
num mundo de sonhos e, ao acordar, as palavras de Tia Nastácia como que não dão
trégua à imaginação, referindo-se a isso como bobagem... Mas não se pode perder
de vista, entretanto, que mesmo voltando de um sonho, a menina desperta num
universo igualmente fantástico: o Sítio do Picapau Amarelo, onde há um sabugo
de milho “científico”, um Burro Falante e, entre muitas outras maravilhas, uma
boneca de pano que fala, pensa e age autonomamente.
A isso deve-se acrescentar o fato de que o próprio ato de ler promove
encontros de diferentes possibilidades de mundo, e não é preciso alguém poder
adquirir uma boneca de pano filósofa para que as aventuras vividas com Emília
através da leitura sejam dignas de aprovação.
Escritas em consonância com a lógica e estrutura do pensamento infantil,
as histórias do Sítio do Picapau Amarelo antecedem as reformas educacionais que
se iniciariam no país por volta dos anos 30 com intelectuais como Anísio
Teixeira. Se hoje as discussões em torno da formação do professor passam pelo
reconhecimento de um maior dinamismo e mais fantasia nos procedimentos
metodológicos, na década de 20 Lobato escrevia:
Enquanto a literatura for entre nós planta de estufa – desabrochada entre
flores como as quer a elite, e enquanto a pedagogia for a própria arte de secar
as crianças com o didatismo cívico, criando, logicamente, o horror à leitura,
será inútil qualquer campanha destinada a despertar o amor do povo ao livro.
•politização infanto-juvenil
Apesar disso, fora muitas vezes chamado “anti-pedagogo”, pelo
questionamento profundo proposto com suas personagens, sobretudo Emília, a
boneca filósofa. A vida humana é central nas aventuras das personagens do Sítio
do Picapau Amarelo, que por sua vez é um mundo pelo qual todos zelam e onde
toda a plenitude de existir é possível.
Em algumas aventuras, o Sítio constitui mesmo uma metáfora do território
nacional: enquanto instruía os adultos sobre a existência de petróleo no país,
Lobato cuidou de informar também às crianças, no formidável O Poço do
Visconde, uma fantástica aventura pelos encantos da geologia – os leitores
então viram nascer no Sítio de Dona Benta um poço de petróleo e a extração do
produto até a sua venda, o que faz a vovó de Pedrinho milionária a ponto de não
querer ouvir mais falar em dinheiro. E em O Picapau Amarelo o dinheiro
do petróleo é investido na compra das terras em redor do Sítio de D. Benta,
para que possam morar lá todas as personagens do mundo do faz-de-conta,
cansadas dos livros antigos e empoeirados em que viviam e achando o máximo das
histórias os livros de Lobato!
Apesar da compra das terras para os amiguinhos “estrangeiros” das
crianças, o território do Sítio do Picapau Amarelo é muito bem demarcado, com o
rinoceronte Quindim de vigia numa entrada que só se desbloqueia quando as
personagens de Lobato se dispõem a receber as visitas. A mensagem está clara:
abertura para o outro, mas zelando pelas particularidades.
Mas o outro também chega para reforçar a consciência da própria cultura
brasileira. Assim como Mr. Slang, o norte-americano, instruía um brasileiro
sobre as possibilidades de independência econômica do Brasil, Peter Pan, em
livro homônimo, chega ao Sítio para brincar com Pedrinho. Acabam se envolvendo
numa aventura com Capitão Gancho e Popeye – um, o inglês e o outro, o
norte-americano. Peter Pan conscientiza Pedrinho das possibilidades
estratégicas que a própria natureza do Sítio oferece para vencer os dois
oportunistas que por lá chegaram com o intuito de roubar o anjinho que as
crianças buscaram em Viagem ao Céu.
O questionamento levado por Lobato aos adultos se encontra em toda a sua
obra infanto-juvenil, e às vezes com muito mais profundidade. O Escândalo do
Petróleo tem seu paralelo infanto-juvenil nO Poço do Visconde, por
exemplo, assim como a mencionada relação entre Mr. Slang e Peter Pan,
além de Hans Staden ser uma adaptação de Meu Cativeiro entre os Selvagens
do Brasil...
Peter Pan sofreu censura no país, pelo seu teor
político, assim como Geografia de D. Benta (neste caso, os acusadores
confundiam autonomia com “separatismo”). Ligas católicas protestaram contra, e
mesmo queimaram exemplares de Memórias da Emília e História do Mundo
para as Crianças. As razões eram basicamente a “subversão moral” de frases
como: “Emília se divorciou”, “Já casei e me arrependi”, “O mundo é dos
espertos”, “A verdade é uma espécie de mentira bem pregada”... Além disso, Pedrinho
lia Darwin, quando era sabido que o homem descende de Adão e Eva...
Sob parecer do procurador Dr. Clóvis Kruel de Morais sobre o conteúdo
subversivo do livro e orientação do Tribunal de Segurança Nacional, deu-se em
todo o Estado de São Paulo, a partir de 1941, a “caça a Peter Pan”
empreendidada pelo Deops. A própria comparação dos brinquedos artesanais e
improvisados das crianças brasileiras com os brinquedos sofisticados das
crianças inglesas foi usado para justificar a censura. Mas trechos como o que
segue naturalmente não deixaram de figurar no parecer:
Há no Brasil uma peste chamada governo que vai botando impostos e selos
em todas as coisas que vêm de fora, a torto e a direito, só pela ganância de
arrancar dinheiro do povo para encher a barriga dos parasitas.
Na figura do Pe. Sales, a perseguição da Igraja Católica aos livros
infanto-juvenis-lobatianos se deu formalmente com a publicação na Bahia de 1957
de A Literatura Infantil de Monteiro Lobato ou Comunismo para Crianças.
O suposto teor comunista é “demonstrado” pelo padre numa explanação de diversos
clichês que a Igreja pretendia revolucionários:
• da negação de uma causa superior à matéria;
• da negação da divindade de Cristo e da existência de Deus;
• da negação da superioridade do cristianismo;
• da negação da espiritualidade da alma e da existência de outros
espíritos;
• da negação da verdade lógica, ontológica e da certeza absoluta;
negação da
imoralidade da mentira e da força do Direito;
• da negação da moralidade do pudor e negação do impudor das
obscenidades;
• da negação da hierarquia social;
• da negação da independência da Pátria;
• da negação do direito à propriedade particular;
• da negação da cultura clássica, ou inspirada no cristianismo; negação
da civilização cristã;
• da negação do respeito devido aos pais, superiores e pessoas idosas;
negação da polidez e boas maneiras.4
•sítio de muitas leituras
Não obstante o nacionalismo lobatiano - o que rende ainda aos dias de
hoje uma controvertida especulação se seria ou não Monteiro Lobato comunista –,
o escritor não perdia de vista a tendência universalista das relações humanas e
a influência de culturas estrangeiras no Brasil, nem sempre desfavorável à
nossa formação. Desse modo propiciou, através das aventuras de suas
personagens, a abertura efetiva para o mundo. Personagens diversas da literatura
universal e do cinema foram visitadas pela turma do Sítio do Picapau Amarelo e
muito bem-recebidas no Sítio de Dona Benta.
Esopo e La Fontaine, grandes artífices do gênero “fábula”, conversam com
as crianças e a boneca quando do excurso das personagens ao Mundo das Fábulas.
Emília aproveita a ocasião para acertar as contas com a famosa formiga que
deixou a cigarra cantora morrer de frio à sua porta fechada... Ao fim do
colóquio com La Fontaine, quando as crianças se despedem, o fabulista suspira:
“Esperança, seu nome é juventude!”
Se as velhas fábulas conservam o seu poder de encantamento e o exercem
sobre as crianças e Emília, não será sem questionamento do fundo moral desses
textos que as crianças entrarão em contato com elas. No livro Fábulas
Lobato reconta, através da narradora D. Benta, as clássicas histórias de
animais “humanizados”. À medida em que ouvem as histórias, as crianças se
encantam, se surpreendem, se indignam, se emocionam e partem para a discussão
da moral inerente ao gênero.
A Cigarra e a Formiga é
deliciosamente narrada por D. Benta, que a conta com o acréscimo de uma formiga
que não havia no original. O final então se divide em duas partes: “A Formiga
Boa” e “A Formiga Má”. A primeira é quase fiel ao desfecho original,
prevalecendo a recusa da formiga em abrir a porta à cigarra – não sem este
preâmbulo do perfil da personagem, que corre por conta da narradora: “A formiga
era uma usurária sem estranhas. Além disso, invejosa. Como não soubesse cantar,
tinha ódio à cigarra por vê-la querida de todos os seres”. E a conclusão:
“faltava na música do mundo o som estridente daquela cigarra morta por causa da
avareza da formiga. Mas se a usurária morresse, quem daria pela falta dela?”
Já a segunda parte, “A Formiga Boa”, se dá da seguinte forma:
-E que fez durante o bom tempo, que não construiu sua casa?
A pobre cigarra, toda tremendo, respondeu depois de um acesso de tosse:
-Eu cantava, bem sabe...
-Ah!... – exclamou a formiga recordando-se.
-Era você então quem cantava nessa árvore enquanto nós labutávamos para
encher as tulhas?
-Isso mesmo, era eu...
-Pois entre, amiguinha! Nunca poderemos esquecer as boas horas que sua
cantoria nos proporcionou. Aquele chiado nos distraía e aliviava o trabalho.
Dizíamos sempre: “Que felicidade ter como vizinha tão gentil cantora!” Entre,
amiga, que aqui terá cama e mesa durante todo o mau tempo.
A cigarra entrou, sarou da tosse e voltou a ser a alegre cantora dos
dias de sol.
Importa ainda considerar o questionamento dos arquétipos impostos pelas
fábulas. Assim como na versão antiga a cigarra fora demonizada por ser cantora,
a formiga, enquanto arquétipo, não ocuparia o posto negativo na versão de
Lobato, apenas invertendo os postos mas persistindo na contenda arquetípica?
Primeiramente, consideremos que a partir do momento que surgem duas formigas
com personalidades diferentes, desmonta-se o arquétipo perpetrado na antiga
versão pela generalização da espécie. Desse modo, se ainda se insistisse em generalizar,
haveria duas forças antagônicas: uma que pendia para a formiga boa, outra para
a má. De qualquer forma, o arquétipo é desmontado, independente do antagonismo
“boa-má”, que no texto de Lobato na verdade reforça não o maniqueísmo do autor,
mas da versão clássica. Por fim, a versão lobatiana conta ainda com a sensível
intervensão de Narizinho:
–Esta fábula está errada! –gritou Narizinho. Vovó nos leu aquele livro
do Maeterlinck sobre a vida das formigas – e lá a gente vê que as formigas são
os únicos insetos caridosos que existem. Formiga má como essa nunca houve.
“Errado” é mais ou menos o que Emília pensa sobre Dom Quixote – traduzido do espanhol para o português de Portugal, século XIX. Começa pelo aspecto físico:
Como fosse livro grande demais, um verdadeiro trambolho, aí do peso de
uma arroba, Pedrinho teve de fazer uma armação de tábuas que servisse de
suporte. Diante daquela imensidade, sentou-se Dona Benta, com a criançada em
redor.5
Depois disso entra-se no problema do entendimento da leitura de um texto clássico, quando Dona Benta começa a ler:
-Num lugar da Mancha, de cujo nome não quero lembrar-me, vivia, não há
muito, um fifdalgo de lança em cabido, adarga antiga e galgo corredor.
-Ché! – exclamou Emília. Se o livro inteiro é nessa perfeição de língua,
até logo! Vou brincar de esconder com o Quindim. Lança em cabido, adarga
antiga, galgo corredor... Não entendo estas viscondadas6,
não...
Dona Benta se vê obrigada a contar à sua maneira a história de D.
Quixote, de modo que as crianças entendam, adaptando a linguagem e recorrendo a
exemplos do cotidiano do Sítio. “Lareira”, por exemplo, é substituída por
“varanda”; “lume”, por “fogo”; “botou-o”, por “botou ele” – “e ficava o dobro
mais interessante”, diz o narrador de Dom Quixote das Crianças.
D. Quixote acaba por se tornar familiar no contexto do Sítio. E num belo
dia faz uma visita ao “Universo Paralelo”, ali permanecendo até se tornar
inconveniente a sua presença. As marcas que ficam da história de D. Quixote
aparecem nas próprias brincadeiras do Sítio, deixando personagens e leitores
íntimos do clássico de Cervantes.
Dom Quixote das Crianças constitui
ainda um marco na própria personalidade da boneca Emília: até então muitas
vezes “acusada” de não ter coração, é a primeira vez que a pestinha chora! Uma
lágrima escorre do rosto da boneca, tão logo Dona Benta conclui a narração da
saga do Cavaleiro das Tristes Figuras. Se a evolução para a condição humana é
característica do trajeto da boneca de pano, muito disso se deve, sem dúvida, ao
contato com a literatura.7
•sítio de muitos leitores
O número de vendas dos livros de Lobato na época em que foram lançados
constituem um recorde ainda para os dias de hoje. Apesar disso, o escritor só
tomou consciência do quanto era querido entre adultos e crianças e do quanto
suas personagens povoavam o imaginário brasileiro, quando das viagens e conferências
por diversas regiões do país em campanha pelo petróleo.
Ao fim da vida manifestava arrependimento por não ter escrito mais para
crianças e não chegou a iniciar o projeto pretendido de escrever uma aventura
com a turma do Sítio às origens das culturas pré-colombianas até a atualidade:
uma história infanto-juvenil da América Latina.
Conta-se que, certa vez, sendo deixado por um amigo de carro à porta de
casa, ao descer do automóvel, ouviu da filhinha do amigo: “Seu Lobato, pede
para a Emília aparecer na janela e acenar para mim!”. Teve de dizer que a
boneca estava dormindo àquela hora, cansada de mais uma aventura, mas numa
outra oportunidade, apareceria...
Através de cartas, centenas de leitores contavam suas experiências com a
leitura de seus textos – mesmo os adultos testemunhavam o prazer que lhes
propiciavam as histórias do Sítio. Algumas crianças “se convidavam” a visitar o
sítio de Dona Benta, pediam um pouco de pó de pirlimpimpim, ou sugeriam o
próprio animalzinho de estimação para as histórias...
O Picapau Amarelo é um bom
exemplo do cuidado de Lobato em responder a seus leitores. Um gato que passa
“por acaso” pelo sítio, ou mesmo a citação direta de nomes de crianças são
partes da homenagem do autor às crianças que o liam.
O mais interessante, porém, são os testemunhos de leitores atribuindo à
leitura de Monteiro Lobato a sua própria formação. Exemplo disso é o leitor
modesto, que em 1941 afirmava em carta endereçada à boneca Emília:
Agora que você me libertou da rotina mental em que eu vivia oito anos
atrás, quero falar de libertado para libertador. No começo, quando eu lia os
livro que o tal Monteiro escrevia, achava muita graça e ria mesmo do que você
falava. Agora, entretanto, que eu sou emiliano, medito profundamente nas suas palavras.
Aquela história do faz-de-conta, por exemplo. É o ser humano que, não contente
de ser livre materialmente, ainda quer e pode ser livre no pensamento.
Mas Modesto surpreende muito mais, três anos depois, em 1944, agora em
carta endereçada a Lobato:
Neles [nos livros do escritor] aprendi a duvidar de tudo que não me
parecesse lógico e a investigar a verdade nos próprios absurdos.
Na mesma carta Modesto diz de Lobato “livre como a própria liberdade” e
se refere a Dona Benta como “pedagoga utópica revolucionária possível”.
Um outro leitor, Marcelo, após elogiar a “simplicidade” da linguagem dos
escritos lobatianos, testemunha:
O professor de português é um tapera. (...) Outro dia, fiz um trabalho
de redação chamado “Luz e Treva”. Tendo como tema liberdade, que é luz, e
ditadura, que é treva. Só porque eu disse uma porção de verdade, falei do nosso
governo, do modo de ele governar, etc; acredita que na metade do trabalho
(porque ele lia o trabalho à classe, para fazer a crítica) começou a lê-lo
baixinho, com medo, dando ares de crime, pondo os meus colegas em expressão de
terror. No fim da leitura disse; sabe que você podia ser preso? (...) Ir preso
por dizer a verdade é simplesmente sublime8.
Os trechos acima exemplificam bem o alcance da literatura lobatiana,
contextualizada com o cotidiano e o universo político-cultural dos leitores,
muitos dos quais se tornariam célebres, anos mais tarde e não esqueceriam do
quanto a sua formação era devida ao escritor.
João Ubaldo Ribeiro fala do choque sofrido aos 12 anos de idade ao saber
da morte do autor do Sítio. Preocupado com a continuidade da série de histórias
da turma da Emília, o menino Ubaldo fez sua primeira tentativa de escritor:
tomar para si a responsabilidade de dar seguimento aos escritos de Lobato9.
Clarice Lispector conta em primeira pessoa a história de uma narradora
que lembra o seu tempo de infância, no conto Felicidade Clandestina. A
narradora em criança se submete a um verdadeiro jogo de tortura psicológica
ministrado pela filha de um dono de livraria que não quer emprestar seu Reinações
de Narizinho, livro pelo qual a narradora é apaixonada:
Era um livro grosso, meu Deus, era um livro para ficar vivendo com ele,
comendo-o, dormindo-o10.
A via-crúcis da narradora termina com a intervenção da mãe da dona do
livro, que faz com que a filha o empreste e ainda diz à menina: “E você fica
com o livro por quanto tempo quiser”. Chegando em casa, após percorrer as ruas
de Recife com o “peito quente” e o “coração pensativo”, a relação menina-livro
ganha uma dimensão de verdadeiro erotismo. Não somente o prazer de ler, mas o
contato físico mesmo com o livro grosso, ricamente ilustrado, pedindo para ser
vivido de modo pleno – corpo-espírito:
Chegando em casa, não comecei a ler. Fingia que não o tinha, só para
depois ter o susto de o ter. Horas depois abri-o, li algumas linhas
maravilhosas, fechei-o de novo, fui passear pela casa, adiei ainda mais indo
comer pão com manteiga, fingi que não sabia onde guardara o livro, achava-o,
abria-o por alguns instantes. Criava as mais falsas dificuldades para aquela
coisa clandestina que era a felicidade. (...) Eu vivia no ar... Havia orgulho e
pudor em mim. Eu era uma rainha delicada.
Às vezes sentava-me na rede, balançando-me com o livro aberto no colo,
sem tocá-lo, em êxtase puríssimo.
Não era mais uma menina com um livro: era uma mulher com o seu amante11.
Felicidade Clandestina constitui
parte da memória de infância de Clarice Lispector, que de fato viveu uma
história semelhante com a filha de um dono de livraria. E Lobato o acompanharia
por toda a vida. Em uma das cartas enviadas da Suíça aos amigos brasileiros, em
1968, a escritora escreve:
Quanto a mim, continuo a ler Monteiro Lobato. Ele deu iluminação a muita
infância infeliz. Nos momentos difíceis de agora, sinto um desamparo infantil,
e Monteiro Lobato me traz luz12.
Cecília Meireles, por sua vez, educadora e extraordinária poeta,
obviamente não poderia não ter lido Lobato. Sem recorrer a um testemunho
explícito, como depoimentos da autora, por exemplo, da influência do autor do
Sítio na literatura infantil de Meireles, é possível surpreender a marca de
Lobato com aquele característico apelo visual. E mais surpreendente será, se se
comparar a descrição do vestido de Narizinho, feito só de cores, conforme
mostrado aqui quando do tratamento da estética do sítio, com o vestido
que Cecília Meireles descreve no belo poema O Vestido de Laura,
publicado em 1964:
O vestido de Laura
É de três babados,
Todos bordados
O primeiro, todinho,
Todinho de flores
De muitas cores
No segundo, apenas
Borboletas voando,
Num fino bando.
O terceiro, estrelas
Estrelas de renda
-talvez de lenda...
O vestido de Laura
Vamos ver agora,
Sem mais demora!
Que as estrelas passam,
Borboletas, flores
Perdem suas cores.
Se não formos depressa,
Acabou-se o vestido
Todo bordado e florido!13
1 Carmen Lúcia Azevedo, Marcia Camargos e Vladimir
Sacchetta. Monteiro Lobato: Furacão na Botocúndia. São Paulo, SENAC,
1997.
2 Recordações do cronista Afonso Schimidt, citado em
Monteiro Lobato: Furacão...
3 Atualmente editado como Reinações de Narizinho.
4Maria Luiza Tucci Carneiro. Livros Proibidos,
Idéias Malditas: o Deops e as minorias silenciadas. Estação Liberdade, Sp,
1997, p. 67-78.
5 Dom Quixote das Crianças
6 Emília se refere naturalmente ao Visconde de
Sabugosa, célebre pelo seu linguajar que, de tão científico e acadêmico, beira
o incompreensível.
7 Outros textos adaptados por Lobato citados no
final do trabalho em espaço reservado à bibliografia do autor.
8 Monteiro Lobato: Furacão na Botocúndia.
9 Cadernos de Literatura Brasileira. São
Paulo, Instituto Moreira Salles, n?7, abril de 1998.
10 Felicidade Clandestina, Rocco, RJ, 1998.
11 Idem.
12Nádia Battella Gotlib, Clarice: uma vida que se
conta, Ática, São Paulo, 1995.
13 Cecília Meireles. Ou Isto ou Aquilo. Rio de
Janeiro, Nova Fronteira, 1990.
Fonte: Instituto Ecofuturo
Fonte: Instituto Ecofuturo
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